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Publicada no início de julho, a Lei 14.611/2023 promete se tornar mais um instrumento normativo no combate à discriminação salarial entre homens e mulheres. A propositura desse projeto de lei foi anunciada pelo governo federal em 8 de março deste ano, no Dia Internacional da Mulher, juntamente com outras medidas relacionadas à temática, como, por exemplo, a sinalização de que o Brasil ratificará a Convenção 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que reconhece a todas as pessoas o direito ao trabalho livre de violência e assédio, além de declarar que o país vai aderir à coalizão internacional de igualdade salarial (OIT, ONU Mulheres e OCDE).
A anunciada adesão do Brasil à Convenção 190 da OIT, que entrou em vigor em junho de 2021, após a ratificação do vizinho Uruguai e do longínquo Fiji, é promissora nessa caminhada de representatividade, já que ela apresenta novidades importantes ao reconhecer a violência e o assédio no mundo do trabalho, além de indicar medidas concretas a serem tomadas na sua prevenção.
A legislação brasileira não apenas proibia que mulheres recebessem menos, apenas por serem mulheres, como inclusive punia o empregador que agisse de forma discriminatória.
A nova legislação recém-publicada traz diversas obrigações acessórias, como a finalidade de fornecer dados estatísticos sobre a ocupação de cargos, não apenas relacionadas a gênero, mas também à raça, etnia, nacionalidade e idade, visando especialmente às empresas com mais de 100 empregados. O texto aumenta as punições contra empregadores que praticam discriminação salarial entre homens e mulheres, estabelecendo a necessidade de fornecimento de relatórios facilitadores para a fiscalização, com a finalidade de garantir transparência no acesso à informação.
Ao analisar o texto legislativo, impossível não se deparar com a seguinte reflexão: era realmente necessária uma nova lei para garantir a igualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho? Já não se vive um “excesso legislativo” no país? Partindo da metodologia de “torturar os números, até que eles confessem”, observa-se que a diferença salarial entre homens e mulheres cresceu no ano de 2022, conforme dados do IBGE. Ao final do ano passado, em média geral, as mulheres recebiam 78% do salário equivalente ao mesmo cargo ocupado por um colega do sexo masculino. Entre todos os indicadores que reproduzem a desigualdade de gênero, a diferenciação salarial poderia ser considerada a sua “pedra fundamental”, pois revela, na frieza dos números, que inobstante uma mulher possa fazer exatamente o mesmo trabalho de um homem, com igual produtividade e perfeição técnica, há enormes chances de a trabalhadora do sexo feminino receber salário inferior ao colega, pelo simples fato de ser mulher.
A questão posta revela-se ainda mais incômoda ao se relembrar a já existência de todo um arcabouço jurídico proibindo expressamente essa diferenciação salarial. Por sinal, a legislação brasileira não apenas proibia que mulheres recebessem menos, apenas por serem mulheres, como inclusive punia o empregador que agisse de forma discriminatória. Antes mesmo da nova Lei 14.611/2023, já havia legislação específica sobre o tema, a exemplo do art. 5º, I, da Constituição Federal, que estabelece que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, além do próprio art. 461, CLT, §6º, ainda na redação anterior à alteração legislativa dessa semana, que previa multa quando comprovada discriminação por sexo.
O texto alterado aumenta o valor da multa pelo descumprimento dessa obrigação de igualdade salarial, assegura expressamente a reparação de dano moral decorrente e estabelece mecanismos de transparência salarial e de critérios remuneratórios. Notícias alvissareiras, sem dúvidas, mas que dificilmente, por si só, vão efetivamente “virar a página” da desigualdade de gênero no mercado de trabalho, pois se sabe que apenas mudar a lei, aqui no Brasil, pouco resolve quando não se muda a cultura do país.
Já havia uma legislação forte, que vedava qualquer discriminação por sexo, especialmente a salarial, inclusive com previsão de multa pecuniária em caso de descumprimento. Agora, há ainda novas previsões legais reforçando tal vedação. Mas, em um país que historicamente não tem bons índices de cumprimento de legislações trabalhistas (bastando analisar a enormidade de ações judiciais ajuizadas anualmente perante a Justiça do Trabalho, cuja maioria busca o reconhecimento de direitos básicos, como o pagamento de verbas rescisórias ou horas extras), ainda se acredita que, realmente, apenas com a mudança na cultura é que os dados da desigualmente começarão a apresentar uma concreta redução.
No sábio lembrete da pesquisadora Daiana Allessi, no artigo A Caixa de Adam, não há como pensar a igualdade de gênero se o conceito de masculinidade não for reconstruído, pois essa atribuição de papéis sociais acaba por impactar diretamente nas relações entre homens e mulheres, e não seria diferente com a questão salarial. Desnecessário comentar sobre toda a recente polêmica envolvendo coaches de masculinidade e suas milagrosas red pills.
Mas o momento não é apenas de reflexões e dúvidas, pois se reconhece que houve também inegáveis avanços nos direitos das mulheres quando se dá uma “espiadela no retrovisor”. Em pouco mais de 90 anos, passou-se do tão sonhado direito ao voto (1932) para a possibilidade de a mulher trabalhar fora sem autorização do marido, o direito à herança e a possibilidade de ter acesso à guarda dos filhos em caso de separação, conquistas do Estatuto da Mulher Casada, de 1962, até a igualdade formal plena, assegurada pela Constituição de 1988.
Como diz o ditado gaúcho, “não está morto quem peleia”, e assim será discutida, debatida, e, quiçá, efetivada a nova legislação. Estamos conscientes de todos os desafios e dificuldades, mas esperançosos também, sonhando com o dia em que nossos descendentes, quem sabe netos e netas, conhecerão apenas nos livros de história sobre a sociedade machista e discriminatória que um dia o país foi.
Thais Poliana de Andrade é professora da FAE Centro Universitário e advogada trabalhista.