Em 1998 quando o Código de Trânsito entrou em vigor, uma das inovações que criava grande expectativa era a "municipalização" do trânsito, que na prática significava que os municípios passariam a gerir seu trânsito por meio de um órgão executivo. No texto legal essa implantação é cogente e não facultativa, ou seja, o art. 8.º do CTB estabelece que os municípios "organizarão" seus órgãos executivos, e não "que poderão organizar". Mediante o cumprimento de exigências estabelecidas pelo Contran o município (por seu órgão executivo de trânsito) passa a integrar o Sistema Nacional de Trânsito, juntamente com os demais órgãos executivos e executivos rodoviários (Denatran, Detran, DER, DNIT, PRF) e os normativos e julgadores (Contran, Cetran, Contrandife).
Seguindo o jargão que o Brasil é um país continental, ele comporta extremos quando falamos dos municípios. Há cidades como São Paulo que possuem uma população de 11 milhões de habitantes, mas há municípios com menos de mil habitantes como Borá (SP). Altamira, no Pará, leva o título de maior município do Brasil (e do mundo!) com seus 160 mil quilômetros quadrados enquanto há outros com menos de quatro quilômetros quadrados (Santa Cruz de Minas MG). Dos cerca de quase 5.600 municípios do país (a imprecisão é deliberada vez que o número aumenta) pouco mais de mil possui o trânsito municipalizado, o que representa menos de 20%. Considerando que o Código de Trânsito está completando 13 anos de vigência hoje, esse porcentual é desolador. Além disso, nos deparamos com extremos em relação às unidades da federação, como Acre e Roraima com apenas um município integrado, e o estado de São Paulo e Rio Grande do Sul com 258 e 203, respectivamente. Dispensável dizer que diante de tanta diversidade estrutural e financeira, é lógico que alguns possuem mais condições e outros sofrem com a carestia, mas pela lei todos têm de cumprir essa obrigação. Um marco que deveria ter contribuído mais para isso, e era a expectativa da época, foi a reforma ministerial de 2003 com a criação do Ministério das Cidades e o deslocamento do Denatran do Ministério da Justiça para o das Cidades, pois, afinal, as pessoas moram nas cidades. Agora no governo Dilma já se vislumbra o retorno para o Ministério da Justiça.
Dentre os municípios que se integraram, muitos deles perceberam a carga de responsabilidade que estariam assumindo e que tal integração não era apenas uma fonte de renda ao município pela provável arrecadação com multas, mas uma fonte de obrigações a serem cumpridas. Eles, então, passaram a buscar uma forma de retroceder nesse processo, mediante à absurda expressão que se criou da "desintegração" do órgão executivo municipal do Sistema. O pior é que o próprio Denatran estaria aceitando essa hipótese e criando meios para isso, em vez de criar condições para manter os que já estão integrados e estimular outros a se integrarem. Juridicamente essa postura de aceitar a "desintegração" é ilegal pelos motivos já expostos. Destaque-se que desde 3 de janeiro deste ano, o Denatran está acéfalo, pois seu diretor foi exonerado e até o momento outro não foi nomeado. A "desintegração" é algo tão absurdo quanto seria um Detran resolver "desintegrar-se" do sistema porque não tem papel para emitir habilitação e licenciamento de veículos. Na sistemática imposta pelo Código de Trânsito no art. 8.º já mencionado, ser município e não ter órgão de trânsito equivale a não ter prefeito ou vereador. A falta de estrutura não poderia ser uma justificativa plausível, pois o art. 25 permite aos órgãos executivos de trânsito firmarem convênios com vistas ao melhor cumprimento de suas atribuições. Aqui vale lembrar que trânsito não é feito apenas de veículos motorizados, portanto mesmo aquela cidade com quatro quilômetros quadrados ou com menos de mil habitantes possui jegues e pessoas que substituíram o jegue pela moto, possui carroças, possui máquinas agrícolas, crianças que andam de bicicleta, e ainda que não possua nada disso, teria ao menos uma rua, a praça, a igreja e pedestres. Uma cidade municipalizada tem moral para pedir ao Detran uma Ciretran, e isso significa identidade, pois as placas dos veículos ostentarão o nome da sua cidade, e não da cidade vizinha que é maior. Os vidros dos gabinetes de Brasília são planos, mas quem senta nas poltronas tem de enxergar o horizonte como se fossem côncavos ou convexos, pois algumas vezes o Brasil precisa ser visto como se fosse com lupa e outras como se fosse com microscópio.
Marcelo José Araújo, advogado e consultor de trânsito, é professor de Direito de Trânsito e presidente da Comissão de Direito de Trânsito da OAB/PR. E-mail:advcon@netpar.com.br.