O Brasil, como um dos mais extensos (5.º) e populosos (5.º) países do mundo, também integra o grupo das maiores (9.ª) economias do planeta, a maior sul-americana e a segunda do novo continente. Não é pouco. Em contraponto, sabemos também do nosso pífio desempenho em saúde, educação e renda (79.º no IDH), afora os desastrosos dados sobre concentração de renda, que põe em mãos de 1% da população a terça parte de suas riquezas, corrupção e violência. Quanto ao “mundo do trabalho”, aqui reduzido aos 33 milhões de relações de emprego, regidas pela quase octogenária Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), sempre bom deitar olhos no binômio empresa e empregado.
Quem mais emprega no Brasil são os setores de serviços, comércio e utilidades públicas, no meio urbano; e o agrícola, no rural. O emprego industrial está em franco declínio, década após década, pela aplicação às largas da automação, robótica e afins. Quem mais emprega, no país, são as micro e pequenas empresas, sendo correto afirmar que as médias e as grandes corporações não impressionam, no fundamento, ainda que sejam as que mais pressionem as casas de leis e a Justiça. Grandes corporações são as que controlam setores – o financeiro, o de obras públicas, o de comunicações, o de transportes etc.
Quem trabalha, no Brasil, em geral estuda muito pouco, tanto na educação formal quanto no aprendizado profissional, razão pela qual o capital humano não é tido como de boa produtividade e competitividade, ainda que também saibamos que talento, inovação e competitividade seriam determinantes no século 21, como advertia Klaus Schwab, o fundador do Fórum Econômico Mundial. Somos assim.
O Brasil não é para amadores é o título saboroso de um livro escrito por Belmiro Valverde Jobim Castor, um mineiro-paranaense, advogado, economista e professor que, por anos, serviu à gestão pública. Ele é muito atual como roteiro à compreensão de nossa pátria, esta nação capaz de realizar um dos mais impressionantes processos de crescimento econômico apesar de suas elites, que navegam em mar raso e cultuam o atraso, e suas classes menos favorecidas.
Troco o país das chuteiras pelo do carnaval. Justifico. A Lei Federal 13.979/2020, que dispôs “sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”, foi o nosso primeiro marco regulatório ante a notícia, ou alerta, urbi et orbi, do que ocorrera a partir da China e indicativos europeus. Era a véspera da pandemia (de raiz grega, “pan”, “todo”, e “demos”, “povo”). Todos os povos. A melhor definição, sim, é da OMS, que a descreve como a propagação de uma doença nova, sem imunização adequada, com alastramento em mais de dois continentes, quando passa a ser algo de dimensão mundial.
Volto a fevereiro. Doença nova, correndo solta e lei federal ditando regras para o enfrentamento (isolamento, quarentena, exames compulsórios e afins); duas semanas depois, o país a se esbaldar na “maior festa do planeta”, segundo divulgam mundo afora os nossos órgãos de turismo. País cauteloso, por seu Ministério de Saúde, cuidou de distribuir aos 26 estados federados, aos seus 5.570 municípios e ao seu único Distrito Federal exatos 128 milhões de camisinhas, alardeando ser necessário proteger o folião e a foliã.
Era o carnaval. Foi de 21 a 26. Aeroportos, portos, rodoviárias e estradas transbordantes. Hotéis, pousadas e pensões lotados. O Brasil fez circular milhões de pessoas, entre nativos e muitos e muitos estrangeiros. Governança qualquer ousaria sustar o calendário momesco por supor politicamente incorreto impedir o faturamento que ele traz à nona economia do planeta, afora a inconveniência de enfrentar os muitos interesses visíveis, invisíveis e até televisivos.
No dia 26, Quarta de Cinzas, o país soube do primeiro diagnóstico à conta da doença nova. Quando as águas de março já alcançavam a metade do mês, enfim, o Brasil, que já tinha o seu marco regulatório, admite o já sabido e resolve parar, piorar e pirar.
Invertendo em parte a ordem. O Brasil pira porque o governo federal não dialogara com os estados e municípios. Pira mais quando observa que nem sequer no Executivo havia pensamento modulado. Pandemia para uns, “gripezinha” para outros; e, para muitos, uma doença alastrante. Isolamento era palavra escrita na lei referida. Mês e dias após, foi-se o ministro da Saúde porque não é incomum, na pátria de chuteiras, trocar o técnico no intervalo do jogo.
Brasil para, de inopino. No setor público, sustentado pelo privado, parar foi fácil. Milhões de servidores, que têm a estabilidade e a irredutibilidade como aliados, foram para o “home”, necessariamente sem o “office”. Muitos, todavia, ligados à questão da doença (médicos, paramédicos, policiais etc.), continuaram a trabalhar com mais afinco, desdobrando-se e infectando-se, pela causa pública e a favor dos cidadãos.
No setor privado – que sustenta o país e sua farta burocracia –, que emprega algo como 33 milhões de pessoas, as dificuldades foram, são e serão efetivas e deletérias. Alguns estados e municípios determinaram a paralisação abrupta das atividades. Em uma decisão monocrática, o STF de um ministro decide que cabe aos estados e municípios a temática, até que o colegiado valide (ou não) tal pensar. Algumas atividades prosseguiram pela essencialidade do que fazem.
Fácil deduzir o efeito. Foi e é o pandemônio, aqui reduzido no mais brando do seu significado: mistura confusa de pessoas ou coisas, confusão. Palavra exata. Em duas semanas, as empresas que conduzem uma das maiores economias do planeta foram à lona, sem caixa para pagar o salário, compras, aluguéis e impostos. Um capitalismo frágil, deveras. Fôlego curto, curtíssimo. Faz sentido, pois quem emprega é a micro e pequena empresa. As grandes corporações, ainda que com melhor cash flow, não destoaram.
As empresas foram à CLT em busca de bálsamo. Encontraram o conceito de força maior (artigo 501) e pensavam poder cortar 25% dos salários (artigo 503) e aliviar os custos das rescisões de contrato (artigo 502). Não sabiam elas que a redução salarial não valia desde a Constituição Federal de 1988, ou seja, mais de três décadas antes. Não sabiam também que o rebate dos custos rescisórios tinha como pressuposto a extinção da empresa ou de estabelecimento. Outros leitores descobriram que a responsabilidade pelo pagamento das rescisões (artigo 486) deveria caber ao governo (municipal, estadual ou federal) responsável pela paralisação temporária. Ledo engano, pois a Covid-19 não foi por ele criada (ainda que um ministro de Estado e filhos influentes do presidente a atribuam a alguma ideologia).
Como enfrentar a situação? O Poder Executivo federal editou algumas medidas provisórias – instrumento constitucional que lhe permite legislar, fundado na relevância e urgência (artigo 62), com posterior submissão ao Congresso Nacional. Fixo-me em duas MPs, ambas editadas à confrontação da crise, como estratégias de salvamento de empregos e empregadores.
A primeira delas, a MP 927, de 22 de março, veio trazer alternativas trabalhistas para o enfrentamento do estado de calamidade pública e da emergência de saúde, tratando do teletrabalho, antecipação de férias individuais (como adiamento do acréscimo de 1/3 para dezembro), concessão de férias coletivas, aproveitamento e a antecipação de feriados, banco de horas, com prazo de 18 meses à compensação, relativização de exigências administrativas em segurança e saúde do trabalho e diferimento do FGTS.
Não foi pouco. Mas insuficiente, ainda. Ferramentas úteis, sem dúvida, porque tudo depende só de acordo direto entre empresa e empregado, que terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais sindicais, respeitados os limites que a Constituição Federal estabelece.
Sucede que várias Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) foram apresentadas ao STF, por diversos partidos políticos e confederações sindicais, a saber: PDT (ADI 6342), Rede (ADI 6344), Confederação dos Metalúrgicos (ADI 6346), PSB (ADI 6348), PCdoB, PSol e PT (ADI 6349) conjuntamente, Solidariedade (ADI 6352) e Confederação dos Trabalhadores da Indústria (ADI 6354), alegando que a referida MP 927 afrontaria a Constituição Federal, pois estaria a vulnerar direitos fundamentais dos trabalhadores, entre eles a proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa.
As ADIs foram às mãos do ministro Marco Aurélio que, monocraticamente, indeferiu os pedidos de liminar. E, no último dia 23, levou a sua decisão ao plenário virtual, proferindo voto no sentido de que “pode e deve” o chefe do Poder Executivo atuar provisoriamente nos campos das relações e da saúde no trabalho. Para o relator, ainda, cabe aguardar o exame da MP pelo Congresso Nacional, “não cabendo atuar com açodamento, sob pena de aprofundar-se, ainda mais, a crise aguda que maltrata o país”. A seu ver, a edição da medida “visou atender uma situação emergencial e preservar empregos, a fonte do sustento dos trabalhadores que não estavam na economia informal”. Em previsão antecipada, o STF, que retornará ao julgamento no próximo dia 29, deverá seguir o voto do relator e não acolherá as ações referidas, permanecendo intactas as disposições da MP 927.
A segunda delas, a MP 936, de 1.º de abril, veio permitir a “redução de jornada e salário” e a “suspensão temporária do contrato de trabalho”, com a concorrência da União, que se propôs a pagar um “benefício emergencial” a todos os trabalhadores alcançados por tais modalidades. A finalidade foi claríssima, preservar emprego e renda, garantir continuidade de postos de trabalho e atividades empresariais. Ao fim e ao cabo, para reduzir o impacto social advindo do estado de calamidade nacional. As empresas estão franqueadas a reduzir jornada e salário (nas proporções de 25%, 50% e 70% e pelo prazo de 90 dias, com uma contraparte paga pela União) e/ou suspender temporariamente o contrato de trabalho, sem nada pagar (se a empresa tiver obtido receita bruta de até R$ 4,8 milhões) ou pagando uma ajuda compensatória no equivalente a 30% do salário do trabalhador, sem quaisquer encargos, pelo prazo de 60 dias, corridos ou não, pois facultada a utilização de dois tempos de 30 dias, no limite de 90 dias.
A redução e a suspensão são alcançáveis por acordo direto entre empresa e empregado, exceto quando o trabalhador tiver salário entre R$ 3.135 e R$ 12.202,12, pois em relação a ele a MP determina a negociação sindical, ressalvada dela a redução do salário de 25%, que é facultada ajustar diretamente. A MP exige que a empresa comunique o sindicato em dez dias da celebração do acordo de redução ou suspensão.
Não foi pouco. Melhor, foi muito. Instrumentos valiosíssimos, pois foram à raiz do problema: caixa das empresas. Instrumentos utilíssimos, sem dúvida, porque tudo depende exclusivamente do acordo direto entre empresa e empregado, com a ressalva indicada.
O partido Rede ingressou com uma ADI (6363), que pedia fosse declarada a inconstitucionalidade da permissão, posta na MP 936, de serem alcançadas redução e suspensão por acordo direto entre empresa e empregado, pois a Constituição Federal (artigo 7.º, inciso VI) determina que a redução de salários seja obtida por negociação (acordo coletivo ou convenção coletiva) sindical. O caso foi distribuído ao ministro Ricardo Lewandowski, que, em 6 de abril, de modo monocrático, deferiu liminar – para posterior deliberação pelo plenário – garantindo o acordo entre empregado e empregador e autorizando aos sindicatos a deflagração da negociação coletiva, após a sua formal comunicação exigida pela MP, afirmando que a inércia sindical equivaleria ao consentimento implícito. Uma decisão ininteligível, certamente. Um equilibrar-se em meio ao tombo.
A decisão pôs o mundo privado do trabalho em polvorosa. No dia 16 de abril, o STF, em sessão plenária, reuniu os seus dez ministros (o decano, Celso de Mello, está afastado por motivo de saúde) para analisar a liminar monocrática de Lewandowski. Direto ao ponto: por sete votos contra três (Lewandowski, Edson Fachin e Rosa Weber) a liminar foi cassada, fixando o STF a tese de que a MP 936 não fere a Constituição, quando permite o ajuste individual à redução de jornada e salário e à suspensão temporária do contrato de trabalho, nos limites que indica.
O que representou tal decisão? O que mais as empresas e empregados necessitavam: segurança jurídica. Direto a outro ponto: a decisão do STF, que julgará a referida ADI mais adiante, liquida com a possiblidade de 1,5 mil Varas de Trabalho, 24 Tribunais Regionais do Trabalho e o próprio Tribunal Superior do Trabalho deitarem tese sobre o assunto. Não foi pouco. Foi bastante, no exato sentido da palavra, ou seja, o que basta e o que satisfaz.
Termino com o título: na pandemia, o STF evitou o pandemônio no mundo do trabalho. E rendo homenagens aos partidos e confederações que levaram as MPs 927 e 936 até ele. Viva a segurança jurídica!
Hélio Gomes Coelho Júnior, advogado e professor de Direito do Trabalho na PUCPR, foi presidente do IAP (2017-19) e do Colégio de Presidentes dos Institutos dos Advogados do Brasil (2019).
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