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Na saúde não há lugar para ilusões

 | Robson Vilalba/Thapcom
(Foto: Robson Vilalba/Thapcom)

O Brasil é mesmo um país de recordes – pena que, muitas vezes, de extremos que só fazem alargar os abismos sociais, culturais e econômicos. O Sistema Único de Saúde, que se constitui no mais extensivo programa de assistência pública em todo o mundo, há pouco ganhou um conjunto de dez tratamentos que utilizam recursos terapêuticos baseados exclusivamente em conhecimentos tradicionais. Assim, a partir de agora, o SUS pode oferecer 29 Práticas Integrativas e Complementares (PICs). Quem sabe mereça o Guinness – da incoerência.

Para o Ministério da Saúde, tratou-se de um grande feito, que sempre há de ter sua repercussão na sociedade, para a qual se encena contemplar novos horizontes na atenção à saúde. Para a comunidade médica, mais uma demonstração do olhar estrábico de nossos gestores na implementação de políticas públicas e no manuseio responsável dos parcos recursos para financiar esse complexo sistema. Parece que a principal doença a ser combatida neste país é a desorientação de ideias quando o assunto é a observância das prioridades dos cidadãos. Surgem vazias ou mirabolantes, de acordo com a conveniência.

Nas palavras do ministro que deixa o cargo, “essas práticas integrativas são uma prevenção para que as pessoas não fiquem doentes, não precisem de internação ou cirurgia, o que custa muito para o SUS. Vamos retomar nossas origens e dar valor à medicina tradicional milenar”. Nada poderia soar mais falso e fantasioso do que prevenir internações ou cirurgias com essas PICs. Num passado não muito distante, mesmo respeitando as crendices populares, alguém haveria de gritar: exploração da credulidade pública é crime! De fato, está no Código Penal. Mas esta é outra questão, como o debate de possível burla ao direito constitucional à saúde mediante subterfúgios.

Por que a comunidade médica é contra as modalidades alternativas no âmbito do sistema público? Primeiro, porque não apresentam resultados e eficácia comprovados cientificamente. Muitas delas nem sequer foram testadas ou só passaram por análises superficiais e de baixa qualidade. E, quando existem testes de boa qualidade, a preponderância da evidência indica que tais práticas não funcionam melhor que um placebo. Em resumo, não têm efeito real. Geram ilusão de tratamento. O paciente, quem sabe, sinta-se melhor em um primeiro momento, mas pode agravar sua doença ao protelar o eficaz tratamento.

Muitas modalidades alternativas nem sequer foram testadas ou só passaram por análises superficiais e de baixa qualidade

Outro aspecto importante a se destacar é que a decisão de incorporar essas práticas na rede pública ignora as prioridades de alocação de recursos no SUS. Embora “jovem”, com seus 30 anos e ainda subfinanciado, esse sistema detém avanços que não podem ser interrompidos com incertezas, com gastos vultosos que vão impactar no que a população de fato necessita para prevenir ou tratar doenças, como o complexo programa gratuito de vacinação.

A prescrição e o uso de procedimentos e terapêuticas alternativos, sem reconhecimento científico, são proibidos aos médicos brasileiros, conforme estabelecido no Código de Ética. Ora, se países mais desenvolvidos aboliram de forma incisiva tais práticas por não terem resolubilidade e por ignorarem a integração da habilidade clínica com a melhor evidência científica disponível, insistirmos nesse caminho contraditório representa mais que desperdício financeiro e recursos humanos. Representa jogo de cena para a sociedade, ludibriada e alijada dos avanços técnicos e científicos. Das 29 PICs respaldadas pelo Ministério da Saúde, somente a homeopatia e acupuntura são reconhecidas como especialidades médicas. Porém, inseridas no SUS como prática integrativa, estão dissociadas da responsabilidade e do grau de complexidade que merecem sob a atenção do médico.

No Paraná, há municípios que adotaram na atenção básica algumas práticas para tratamento de usuários do SUS, como medicina tradicional chinesa, massoterapia, ioga, massagem, auriculoterapia, dança circular, reiki, arteterapia, meditação, terapia comunitária etc. Sem entrar no mérito de eventuais efeitos positivos no bem-estar, na autoestima, na recreação ou na melhor disposição física e mental, é de se asseverar à população que de modo algum prescinda dos tratamentos médicos de que ela necessita; deve exigi-los por seu legítimo direito. Isto é, a orientação médica deve prevalecer mesmo ante a oferta do que há de mais “moderno” disponível no sistema, como apiterapia, aromaterapia, constelação familiar, cromoterapia, geoterapia, hipnoterapia, ozonioterapia...

É enigmático como surgem tais estratégias espetaculosas, que ignoram todo o conhecimento e experiência adquiridos no campo médico. Quando se fala em planejamento, mais coerente seria buscar saídas para suprir a metade da população brasileira carente de saneamento básico, cuja cobertura cresceu apenas 8,3% nos últimos 11 anos. Se a nação, com sua riqueza hídrica, detendo mais de 13% da água potável do planeta, não consegue suprir as necessidades de seu povo, pouco avançará na diminuição das desigualdades sociais, na melhoria dos indicadores epidemiológicos e na redução de casos de doenças infectocontagiosas, hoje recrudescentes. Estudos recentes mostram que 65% das internações de crianças menores de 10 anos são causadas por doenças decorrentes da fragilidade ou da inexistência de redes de esgoto e água tratada.

Saneamento básico e o acesso à água são essenciais para a promoção da dignidade humana. Seu investimento é alheio à dotação orçamentária do SUS, mas sabe-se que cada real aplicado nessa área representa economia de R$ 4 em gastos na saúde. Ricardo Barros, ao assumir o Ministério da Saúde em 2016, chegou a propor um “mutirão” com outros ministérios para uma política clara de investimento no setor. A ideia não prosperou e o preço pago tem sido a convivência com doenças primárias e que há muito pareciam erradicadas.

Num cenário marcado por erros técnicos e polêmicas, o novo ministro já surge como potencial fomentador. Em sua primeira declaração, propõe o uso compartilhado de área física de unidades assistenciais ociosas com creches e escolas, explicitando a anuência à postura dos prefeitos que descumprem suas obrigações constitucionais. Isso nos traz a certeza de que, enquanto o setor for tratado como política eleitoreira e não como política pública de promoção à saúde, continuaremos a conviver com “sortistas” e outras ilusões, refletindo em desrespeito aos direitos dos cidadãos e na formação de filas de espera por serviços assistenciais e medicamentos de que a população necessita.

Sim, precisamos de gestores comprometidos com a saúde pública e que adotem medidas que acentuem a sua competência administrativa, refletindo-se na promoção de políticas eficazes e que possam ser permanentemente monitoradas e avaliadas em seus resultados.

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