É muito comum observarmos a evocação de termos como “isso é tão medieval”, “tanta violência hoje, parece a Idade Média”, “na Idade Média pensavam que a Terra era plana”, “se a Idade Média voltar, irei ficar no lado das bruxas” e outras diversas frases prontas. Poderíamos até dizer que isso é resultado de informações falsas taxando a Idade Média, período de 476 a 1453, como a Idade das Trevas. Mas o pequeno problema é que temos professores que levantam a bandeira para “confirmar” essa inverdade.
Você deve estar se perguntando, mas a Idade Média não era assim? A resposta é não e temos como comprovar isso. A Terra é descrita como uma esfera pelo Venerável Beda (século VII), Roger Bacon (século XIII) e Tomás de Aquino (também século XIII), entre outros. Roger Bacon chegou a adivinhar que o movimento dos corpos celestes influenciava acontecimentos na Terra. E não só isso: em representações de coroações medievais, podemos observar entre os objetos de coroação o Orbe (latim globus cruciger) representando um globo terrestre. O tal "mito" da crença da Idade Média em uma Terra plana foi originado durante o século XIX, e temos dois indivíduos para culpar, agindo quase simultaneamente, mas de forma independente.
Existem inúmeros exemplos de como a Idade Média foi enriquecedora e muito dos objetos e tecnologias que usamos hoje surgiram naquele período.
O francês Antoine-Jean Letronne procurou menosprezar a Igreja Católica em seu estudo de 1834 Sobre as Ideias Cosmográficas dos Padres da Igreja, procurando retratar o clero como anticientífico e ignorante. Enquanto isso, o ensaísta americano Washington Irving, em um esforço para encorajar o "mito" de Colombo, apresentou aos Estados Unidos o conceito errôneo de que os europeus pensavam que a figura folclórica estava agindo em desafio à opinião popular. O trabalho de Irving se tornou um elemento básico do sistema educacional americano, mesmo depois de ter sido amplamente desmentido e apontado como incorreto.
Outra ideia errada é a de que a Inquisição teria sido criada para caçar bruxas. Bom, primeiramente, a Inquisição foi criada em 1184 como um corpo de investigação para acompanhar casos de heresia, tais como as propagadas por cátaros e valdenses, e durante a maior parte da era medieval, a mensagem padrão disseminada pelos clérigos a respeito da magia era que era um disparate tolo que não funcionava. A “mania” das bruxas europeias foi mais um fenômeno dos séculos XVI e XVII.
Por que as pessoas detratam a Idade Média? Creio que isso pode ser atribuído a uma espécie de “cancelamento do bem” que perdura até os dias atuais. No no século XVIII, os chamados iluministas se consideravam herdeiros do pensamento e da ciência desenvolvidos por gregos e romanos, fazendo renascer a cultura da Antiguidade. O período posterior à Antiguidade passou a ser tratado como sinônimo de atraso, até como forma de ressaltar a suposta superioridade dos antigos.
Antes dos iluministas, os renascentistas já apontavam para uma ideia similar. Para eles, durante a Idade Média, as artes e as ciências, se comparadas à Antiguidade, haviam declinado. A responsabilidade disso seria em boa parte da Igreja Católica, que dominou política, econômica e culturalmente a Europa no período. A dominação religiosa teria impedido o desenvolvimento da razão, criando uma era de atraso e primitivismo. Mais uma inverdade, pois na Idade Média temos o florescimento das universidades e o surgimento da prensa de Gutemberg, que revolucionou o conhecimento; nas Cruzadas tivemos as primeiras estruturas bancárias para depósito de dinheiro para resgatar depois; as vilas irão criar os pequenos burgos que irão financiar as artes. Sem contar que para redigir esse texto eu estou usando óculos, e olhando o relógio, ambos objetos criados nesse período. Existem inúmeros exemplos de como a Idade Média foi enriquecedora e muito dos objetos e tecnologias que usamos hoje surgiram naquele período.
Sobre a suposta violência do período, outra afirmação falsa em relação à Idade Média, bom, basta lembrar que no século XX tivemos a prova do que a humanidade é capaz de fazer em termos de violência. Diferente das guerras que sempre tivemos na história, no século XX temos a tentativa de eliminar todo um grupo da face da Terra, como o genocídio da Namíbia na África, o genocídio Armênio durante a 1ª Guerra no Império Turco Otomano, o Holodomor na Ucrânia, o Shoá (Holocausto) na 2ª Guerra mundial, o genocídio em Ruanda contra Tutsi, Twa e Hutus, sem contar as mortes massivas pela fome agravadas por políticos como o caso de Biafra na Nigéria, Darfur no Sudão e diversas outras violências. Nada na Idade Média matou tanto quanto essa violência fria, determinada e industrial no século XX, ou eu diria, nada por enquanto.
Rafael de Quadros é historiador com especialização em História Medieval pela Universidade do Porto/Portugal. É fundador do portal historiamedieval.com.br e autor da obra “História Medieval: A Queda do Império Romano à Queda de Constantinopla”.
Deixe sua opinião