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Opinião do dia 3

Naifs: ingênuos mundos

Às vezes os cristos de Lafaete Rocha parece que se mexem. Pura imaginação de quem não se cansa de mirar o trabalho de nosso mais importante santeiro. De fazer santos de madeira ele viveu, num relativo anonimato, no interior rural da cidade da Lapa, aqui no Paraná até ser descoberto pelo faro especial de uma mulher que se especializara em descobrir artistas naifs, a professora Ivani Moreira, que nos anos 60/70 dirigiu a Casa Museu Alfredo Andersen, um centro cultural meio esquecido e deslocado dos eixos da promoção artística. Mas importante.

Lafaete, homem sem letras e de raízes fundamentalmente populares, negras e caboclas, tirava do imaginário, preenchido por figuras celestes, a matéria-prima de suas esculturas. A madeira dava à luz a um panteão de figuras como a Santa Cruz, Santa Bárbara, Santo Antônio, exprimindo uma realidade hagiográfica cuja precedência era sempre a do Cristo. Os cristos crucificados, de preferência. E tudo muito ingênuo, a ausência da técnica canonizada pelos mestres sendo compensada pela visão única dos artistas que transbordam numa inocência jamais violada. Ingenuidade que os faz participar de um universo paralelo, essencial e único.

O santeiro Lafaete teve uma vida de inúmeras limitações materiais, e não conseguiu se manter na cidade grande, Curitiba, para onde se deslocou com a família apoiado pela prefeitura, nos anos 70. O incêndio da pequena casa e a morte de familiares pelas chamas só anteciparam a decisão de voltar à Lapa, onde continuou produzindo, quase escondido, meio esquecido. Morreu nos anos 90, deixou uma obra que, sob a orientação de gente como Ennio Marques Ferreira e Ivani, chegou a percorrer salões nacionais, como o então importante Salão Jornal do Brasil, no Rio. Alguns críticos de primeira linha – Walmir Ayala, um deles – fizeram genuflexões à obra de Lafaete Rocha.

As novas gerações dos IPod, mestres em internet de muitas presenças, Orkuts, Messengers e de tantos novos meios que a tecnologia vai largando no mercado diariamente, me fazem questionar se ainda há espaço para talentos como os de santeiros, ingênuos artistas do porte de um Lafaete.

Desconfio que os rapazes e moças que se negam até à leitura impressa tradicional (jornais, revistas, livros), e tendo quase que só pretensões cosmopolitas, estão sendo privados de riquezas à beira da extinção, como os "naifs". São pérolas de raro valor que eles ignoram, pois os naifs falam uma linguagem e retratam realidades que não estão no cardápio da cultura de massa que a indústria pop de inspiração norte-americana produz. Os milagres da instantânea multiplicação de figuras tecno pelo computador mandam para o limbo a produção naif.

O que mais sinto é que, sendo verdade esse alheamento, estabelece-se um "gap" na vida dos jovens e de difícil superação. Eles vão marchando para a vida adulta sem ter tido contato com um dos viveiros mais significativos da vida brasileira: o das realidades multicoloridas de festas, crendices, jogos, amores, santos, assombrações, lendas, paisagens físicas e humanas que os artistas populares captam com suas antenas peculiares.

Os ingênuos (ou naifs ) sabem tirar a temperatura da alma brasileira no que ela tem de mais loquaz. São o melhor filtro do espírito nacional, decodificando um mundo muito visível e bem presente mas que, a pretexto de caminharmos com a modernidade, estamos tentando ignorar. O que é uma pena: não conseguimos inserção na dita modernidade primeiromundista e, com ar blasé, ignoramos a seiva vital sintetizada pela arte popular.

PS: Por falta de recursos o Museu Naif do Brasil, localizado no Rio de Janeiro, decidiu recentemente fechar o acesso ao público.

Aroldo Murá G.Haygert é jornalista e presidente do Instituto Ciência e Fé (www.cienciaefe.org.br)

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