A pobreza é um grande problema no Brasil e uma de suas consequências é a fome. Com a pandemia, esse mal se agravou. O auxílio aos pobres foi afetado pela queda de recursos para indivíduos e entidades, e também pelo medo do contágio. Em meio a um cenário já difícil, um projeto apresentado recentemente pela prefeitura de Curitiba causou surpresa porque, em vez de estimular a caridade, inibe doações de comida. Quase rejeita a ajuda da sociedade, como se o município fosse capaz de, sozinho, resolver a questão de todos que passam fome.
Mais do que analisar méritos e deméritos de um projeto de administração pública, vale uma discussão sobre o auxílio ao próximo ao longo dos anos. O Egito acolheu hebreus em meio à fome, Roma auxiliou os necessitados com a política de “pão e circo” e Aristóteles, no livro Política, já falava que a polis deveria ajudar os que precisavam. Nada mais justo. Mas a história está repleta de exemplos de homens e mulheres que, por amor ao próximo, doaram recursos financeiros e também tempo, abraços, atenção, palavras de apoio.
O Estado não é onipresente. Ele tem responsabilidades constitucionais a cumprir, é claro, mas a solidariedade é um ato humanitário que se pratica também longe da máquina pública. Qual a razão de criar regras para a partilha? Não há motivo para suspeitar que alguém queira fazer o mal quando oferece ajuda a outro. Haveria má-fé nesse ato?
Como no polêmico projeto de Curitiba, uma tentativa de regular o auxílio aos pobres aconteceu na Inglaterra, em 1601, no reinado de Elizabeth I. Com a “Lei dos Pobres”, o Estado coordenava as esmolas: oferecia alimentação mínima, suficiente para que os pobres sobrevivessem, mas sem estimular a “vadiagem”. No século 20, o fascista Benito Mussolini também extrapolou o que se espera da ação governamental, com seu lema “Tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado”.
A pressão popular já fez a prefeitura rever pontos do projeto e novas mudanças ainda podem acontecer, mas o simples fato de pensar em multar quem doa o pão é suficiente para que se rejeite o monopólio da caridade. Tal proposta faz pensar que, se Jesus fizesse o milagre da multiplicação em um dos parques de Curitiba, dando pães e peixes a uma multidão faminta, seria multado. Afinal, qual a origem dos pães e dos peixes que Cristo usou? Havia segurança alimentar? As pessoas estavam com as mãos limpas quando sentaram e comeram? Se o Filho de Deus não desse comida, as autoridades dariam?
Se deixarmos a religião de lado e olharmos pelo lado político, veremos que, embora isso esteja no imaginário de muitos, o auxílio estatal a pobres nunca foi ação exclusiva da esquerda. Foi bandeira conservadora entre os tories ingleses nos governos de Benjamin Disraeli; com o democrata-cristão alemão Konrad Adenauer e a sua Política Social de Mercado; e é hoje pauta do Partido Lei e Justiça (PiS), na Polônia. Mesmo entre liberais está presente a noção do auxílio aos pobres por parte do governo. Milton Friedman, um dos ícones da Escola de Chicago, propunha um imposto negativo, de forma que o governo receberia tributos e repassaria um valor para os que não atingissem uma renda mínima.
Em suma, a grande maioria reconhece que o Estado tem papel importante no combate à pobreza. O ponto de divergência está em demarcar sua atuação, e essa discussão não é pequena. Tanto na visão de planificação central que surge após a Revolução Francesa, com Napoleão, e depois na Revolução Russa, no modelo da Nova Política Econômica de Lênin, como na proposta de Estado tecnocrático que surge na Prússia e se consolida com F. D. Roosevelt, passando pelos modelos fascistas de Mussolini, Perón e Vargas, o Estado traz para si a responsabilidade de diversos atores da sociedade, assumindo papel maior do que lhe caberia para a promoção do bem comum.
Essa tendência centralizadora se espalhou no Brasil com o positivismo que permeava tanto as ideias da esquerda trabalhista como dos governos desenvolvimentistas dos militares. Isso alimenta até hoje um jogo retórico: se alguém não quer que o Estado concentre a solução de um problema é porque não liga para ele. Não seria diferente na questão da miséria.
Talvez nunca tenhamos dados estatísticos sobre isso, mas acredito ser mais comum pessoas reclamarem da atuação estatal no combate à pobreza do que fazerem uma reflexão pessoal sobre o seu papel em relação àqueles que passam por necessidades. A discussão sobre a caridade pessoal é pequena, a noção de subsidiariedade soa estranha à maioria e a compreensão do que é a solidariedade é deficiente. Então, precisamos justamente fazer o contrário do que foi proposto na capital paranaense e estimular a caridade. Até porque é natural do ser humano ter empatia pelo sofrimento do outro; mesmo quem é mais insensível vê que a pobreza precisa ser mitigada.
Não pretendo atribuir má intenção aos que querem ampliar o papel estatal, mas apenas ressaltar que essa é uma visão ideológica. O Estado deve atuar em prol do bem comum e dos que necessitam. Mas, para que o bem comum se dê, não existe contraponto entre ele e o bem individual. O poder público é capaz de levar um grande bem à sociedade não só quando age de acordo com suas funções, mas também quando não age para além daquilo que lhe cabe fazer. A virtude está na reta medida, nem na falta e nem no excesso. Não deixar de agir quando necessário, mas não intervir e cooptar funções que não são da sua natureza.
Diante da pobreza, é indispensável a ação das sociedades intermediárias, que surgem de forma orgânica e são autônomas ao poder estatal. Essas organizações conseguem condensar a atuação individual, de forma a concentrar esforços em soluções de problemas complexos. Assim surgiram as instituições de caridade, religiosas ou não, as associações, os clubes, as ONGs, as cooperativas, entre outras, que sempre tiveram atuação ampla para atenuar problemas sociais. Portanto, em vez de resgatar a noção individualista ou incentivar a ideia coletivista, é preciso difundir a noção comunitarista.
Mais do que tentar cooptar para si a beneficência da sociedade, cabe ao Estado atuar para promovê-la. O governo deve estimular que as associações e sociedades atuem de forma autônoma para o bem comum. Dificilmente noções de comunidade, subsidiariedade, solidariedade, bem comum, benevolência, beneficência, caridade e amor ao próximo, entre outros, serão resgatadas exclusivamente por meio de políticas públicas. O bom gestor sabe o que é e o que não é possível ser feito por meio da atuação do Estado. Há elementos que dependem mais de lideranças, intelectuais, influenciadores e empreendedores, que saibam guiar empreitadas, de forma que os apliquem em iniciativas na sua cidade, no seu bairro, sua paróquia, seu condomínio, sua comunidade.
A população precisa ter consciência de que há ações que são dever do poder público e outras que o Estado nunca conseguirá realizar de forma satisfatória. Em lugar de contar com um governo cada vez maior e mais pesado, seria mais eficaz direcionar esforços em reunir-se com seus pares, organizando-se para buscar soluções locais, visando uma atuação conjunta, integrando as habilidades de cada um. Quando não for possível atuar apenas na esfera individual e comunitária, aí, sim, deve-se acionar o poder público.
Se não for assim, sempre haverá espaço para populistas que prometem e se comprometem com o que nunca poderão entregar. Em meio a isso, os bons governantes serão cobrados por soluções rápidas e fáceis para aquilo que está além do seu alcance. Nessa linha, o Brasil seguirá se pautando por soluções imediatistas, buscando salvadores da pátria, focando em ações de curtíssimo prazo e se acostumando com problemas que nunca são solucionados.
Em vez de monopolizar a caridade, seria melhor difundir a ação social, para que todos possam descobrir a alegria da generosidade, da liberalidade e da amizade com os necessitados. Quanto mais isso acontecer, menos aqueles que estão em situação de pobreza serão vistos como meros números no sistema de gestão pública e mais como pessoas. E o milagre de partilhar o pão continuará sendo realizado.
Valdemar Bernardo Jorge é secretário do Planejamento e Projetos Estruturantes do governo do Paraná.
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