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Simultaneamente à chegada do papa ao Palácio da Guanabara, ontem, manifestantes em seis cidades do país exigiram seu direito de não serem tratados como cidadãos de segunda classe do Estado brasileiro. No Brasil, alguns cidadãos podem ter seus eventos religiosos promovidos com dinheiro público; outros, não. Alguns cidadãos têm as viagens dos líderes de suas religiões promovidas com dinheiro público; outros, não.

Podemos até custear a segurança do papa, mas não é de interesse público torrar R$ 850 mil de impostos em sua recepção, ou usar aviões da FAB para trazer os veículos papais ao Brasil. Pelo mesmo motivo não se pode utilizar as Forças Armadas para transportar ícones religiosos, criar feriado municipal em quatro dias, nem transferir para o Estado os gastos em saúde que cabem aos organizadores de qualquer evento, segundo entendimento do próprio Ministério Público do Rio de Janeiro. E esses são apenas alguns exemplos. Os levantamentos da mídia apontam cerca de R$ 120 milhões em gastos públicos – e o Estado se recusa a dar transparência a esses números, divulgando as cifras exatas.

Desde a fundação da República as autoridades tratam a laicidade com descaso. E as violações ocorrem de maneira perversa, porque o Estado já não tem influência nenhuma sobre a religião, mas a religião continua se utilizando do Estado para ganhar dinheiro e influência. Isso precisa parar.

Apelidamos de "desbatismo" a forma encontrada para protestar contra o uso da coisa pública pela religião. Com o desbatismo, afirmamos que ninguém tem direito de nos impingir uma religião: nem a nós, pessoalmente, nem ao dinheiro dos nossos impostos, nem ao Estado brasileiro. Afinal de contas, o uso de dinheiro público em eventos católicos nos torna, todos, católicos à força. Essa influência é não apenas injusta como também é ilegal, pois contraria a laicidade constitucional do Estado brasileiro e nossa liberdade de consciência e crença, excluindo todos aqueles que não são católicos. E, segundo as últimas pesquisas, os eleitores não católicos são 43%.

Com o desbatismo, estamos dizendo: não somos menores, somos iguais. E não queremos que o Estado ceda seu poder ou seu dinheiro a qualquer crença ou descrença. O financiamento público de viagens de chefes de Estado só é justo quando elas se devem a assuntos de Estado, não a fins religiosos. Nenhuma norma ou prática pode contrariar princípio constitucional como a laicidade.

Convém lembrar que nem entre os católicos há muitas pessoas que levam a sério a mensagem da sua igreja. No Brasil, as pessoas se divorciam. Muito. E livremente. Elas usam pílula e camisinha, fazem sexo fora do casamento, fazem ou se beneficiam de pesquisas com células-tronco. Brasileiros dão direitos aos homossexuais, fazem aborto de anencéfalos e em caso de estupro. E todas essas coisas podem acontecer aqui, não graças a qualquer deus, mas apesar do catolicismo, apesar do papa, e graças à laicidade do Estado que teimam em violar.

Nenhuma crença ou descrença pode ser privilegiada pelo Estado. Sem exceções. São os fiéis de uma religião que devem sustentar as atividades dela e de seus líderes. Não importa quantos adeptos tenha, nenhuma crença pode ser tratada pelo Estado de maneira diferente das demais. A igualdade não está sujeita à maioria e não depende de voto: é um princípio inegociável de uma República democrática e justa.

Daniel Sottomaior é presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea).

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