Na tarde do último sábado, 7 de dezembro de 2013, Maria chorou por seu filho Marco Alexandre, o Xandão, que perdeu a vida de maneira absurda e revoltante no trânsito nada amigável da capital paranaense. Um motorista, dos muitos cujo mesmo perfil agressivo é visto e observado cotidianamente pela cidade, resolveu uma disputa de trânsito assassinando Alexandre com uma facada no coração. Curitiba tem muitos carros e motoristas que se creem donos da rua, senhores dos destinos de todos aqueles que, por infortúnio ou incapacidade, não possuem um automóvel, meio de nos elevar à esfera, mais do que desejada, de cidadania plena. A cidade atual foi feita para o carro. A dinâmica do trânsito, das ruas, foi planejada para ele. Ai de quem se atrever a ficar no seu caminho! Ai de quem ousar questionar o livre ir e vir... do carro!
Alexandre sofreu, como todos os ciclistas desta cidade sofrem, a agressividade, a intolerância e o desrespeito de boa parte dos condutores de veículos motorizados que transitam por aí. O artigo 201 do CTB, que afirma a necessidade de garantir uma distância segura ao ultrapassar um ciclista, é ignorado e desprezado deliberadamente por muitos motoristas.
Do que mais precisamos para sensibilizarmo-nos? A culpa não é só do poder público, mas de todos nós. Aquela lâmina que rasgou o coração do Alexandre não foi guiada apenas pelas mãos do motorista homicida, que representa muito bem a personalidade limítrofe que se manifesta na sociedade atual. Não vamos nos iludir. O carro, sua propaganda e valores nos impulsionam a comportamentos agressivos, à ilusão de onipotência. Qual o sentido de termos carros tão velozes no meio urbano? Tempo é dinheiro? Pois bem, vamos investir na bicicleta que nos conduz pelas cidades em tempo mínimo e prazer máximo. Que tipo de valores, costumes e práticas nos fizeram acreditar que essa deformação do convívio social, pela degradação das ruas em pistas de corrida, é desejável ou mesmo benéfica para a vida das cidades?
Somos todos responsáveis. Vítima e algoz se igualam nessa equação. O infeliz e arrogante motorista, de 35 anos, e o ciclista Alexandre, de 30 anos, que afrontou, com o sangue quente de quem teme pela vida, a soberba motorizada. Eles são emblemáticos da própria relação caótica no trânsito de nossas cidades. Em Porto Alegre, atropelamento coletivo. Em São Paulo, o braço decepado e despejado num rio. Em Curitiba, a faca no coração.
O que mais estamos esperando? A cifra assustadora de 45 mil mortos por ano não cai na conta dos pedestres e ciclistas brasileiros. São os condutores dos veículos motorizados os protagonistas dessa tragédia.
As demandas imediatas que se impõem ao poder público, municipal, estadual e federal, só não são implantadas com a devida agilidade porque aqueles que decidem o futuro das cidades não são, de fato, ciclistas, pedestres e tampouco usuários frequentes do transporte coletivo. Mas tais demandas devem ser, mais uma vez, listadas e exigidas por todos nós. A defesa de um trânsito mais seguro, mais humano, não é reivindicação apenas para favorecer os ciclistas, como se estes fossem um grupo especial de pessoas. São benefícios diretos para todos. Todos somos pedestres acima de tudo. Cidades onde pedestres, ciclistas e pessoas com deficiência possam transitar com segurança e conforto não são utopia ou realidades inatingíveis. São, na verdade, escolhas políticas deliberadas, muitas das quais de custo irrisório. Queremos ver a OAB, a ACP, sempre preocupada com a harmonia e o bom funcionamento da cidade, sindicatos e conselhos de arquitetura, engenharia e outros exigindo do governo e prefeitura medidas que preservem a integridade humana.
Precisamos estabelecer um perímetro de velocidade baixa e absoluto respeito aos pedestres: a famosa "zona 30" ou centro acalmado, prática de engenharia do trânsito que estabelece, em zonas de alto tráfego peatonal, uma velocidade máxima de 30 km/h, bem como a prioridade aos pedestres, ciclistas e transporte coletivo. Tal proposta foi rejeitada, em bloco, pelos prefeitos que antecederam o atual gestor. Cabe a Gustavo Fruet a coragem, a inteligência e a audácia de criar essa zona de segurança da vida humana. Em tempos de barbárie, isso será considerado, por aqueles que defendem a motorização, como uma grande afronta. Mas, por todos os outros que ainda acreditam em cidades que respeitam a escala humana, que sabem da importância do caminhar, do pedalar e do contemplar (verbos esquecidos por muitos) na qualidade de vida nos centros urbanos, tal medida será devidamente valorizada.
Fiscalização de velocidade, travessias elevadas, cruzamentos seguros para pedestres, redução das vagas de estacionamento público, criação de ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas, campanhas educativas permanentes e contundentes, que mostrem a gravidade do problema, tudo isso são ações necessárias e que precisamos todos aprender a demandar. Tolerar o intolerável é nos despir de nossa própria humanidade. "Cidades para pessoas" é um mantra que podemos, em conjunto, entoar. Pela memória do Alexandre Rocha e pelo futuro de nossos descendentes.
Jorge Brand, coordenador-geral da Associação de Ciclistas do Alto Iguaçu (CicloIguaçu).