Dois acontecimentos dignos de nota marcaram o mês de novembro no mundo da biotecnologia. Um pesquisador chinês disse ter criado dois embriões humanos geneticamente modificados e que nasceram normalmente; e a comunidade científica mundial rejeitou veementemente o experimento, classificando-o como uma violação ética. Por sua vez, o governo chinês condenou o médico e pediu investigação imediata.
O que está em jogo aqui é uma tecnologia em desenvolvimento chamada Crispr-Cas9. Ela permite que cientistas editem o genoma das células. Essa técnica tem o potencial de tratar uma série de anomalias genéticas como fibrose cística ou anemia falciforme, bem como doenças mais complexas, como câncer e doenças do coração. O pesquisador chinês, aliás, diz que modificou geneticamente as duas crianças (quando estavam no estágio embrionário) para torná-las imunes ao HIV.
Por mais promissor que pareça, o desenvolvimento da edição genética de embriões humanos levanta uma série de questões éticas. Preocupações sobre experimentos em menores de idade, destruição de embriões humanos, a criação de vida em laboratório, “bebês projetados”, a fronteira entre a terapia e o “melhoramento”, e intervenções no genoma que serão transmitidas às futuras gerações. Em outras palavras, a edição genética de embriões humanos traz à tona novas versões de antigos dilemas bioéticos, além de outros novos.
Em primeiro lugar, inúmeros seres humanos em estágio embrionário foram mortos no processo que levou ao nascimento dessas duas crianças geneticamente modificadas. Assim como nas chamadas “técnicas de reprodução assistida”, cria-se um número de embriões muito maior que o efetivamente implantado e que chega a ver a luz do dia. Os demais embriões ou são congelados indefinidamente, ou são destruídos. Essa pesquisa representa uma ameaça imediata ao direito à vida dos não nascidos.
Há um perigo enorme em criar crianças em laboratório, um processo que trata seres humanos como objetos de domínio tecnológico
Independentemente da sua posição sobre o aborto no caso de gestações não planejadas, a criação (e destruição) intencional de seres humanos deveria preocupar a todos nós. Um desrespeito tão clamoroso à dignidade humana não anuncia um futuro muito bom para a integridade da ciência.
Nós também deveríamos nos importar com a dignidade da vida em suas origens. Há um perigo enorme em criar crianças em laboratório, um processo que trata seres humanos como objetos de domínio tecnológico. Isso terá profundas implicações morais e culturais no progresso científico: as sociedades podem passar a enxergar a vida humana — modificada ou não — como algo que pode ser facilmente manipulado e descartado.
Esquecemo-nos do fato de que crianças deveriam ser trazidas à vida, não fabricadas, por nossa conta e risco. E deveríamos suspeitar de práticas que separam o ato de dar a vida do ato de fazer amor. De fato, os nomes dessas novas tecnologias está errado. Elas não “assistem” coisa nenhuma: elas substituem a fertilidade e a procriação pela reprodução em um laboratório estéril. Seres humanos devem ser recebidos como presentes, não fabricados como produtos.
As tecnologias por trás da manufatura de bebês ainda gera novas questões. A Crispr-Cas9, e outros procedimentos semelhantes, fazem aos cientistas seguir adiante na estrada que leva a bebês projetados. Isso permitiria que os pais — ou as autoridades — ditassem as características das futuras pessoas.
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Surge, então, o fantasma de um certo “admirável mundo novo” em uma corrida na qual as armas são a genética. Imagine as “duas Américas” do discurso de John Edwards, mas em que a divisão é entre os “afortunados genéticos” e os “desafortunados genéticos”. Uma América em que os ricos (e moralmente inescrupulosos) projetam superbebês, enquanto todos os demais permanecem “não melhorados”.
Como explicou o filósofo Leon Kass, “destruir uma criatura feita à imagem de Deus é sumamente mau, mas seria ainda pior criá-las à imagem e semelhança de si mesmo”.
As crianças de agora foram modificadas para se prevenir do HIV, mas ninguém sabe qual será a próxima alteração genética. E não é difícil imaginar como essas novas tecnologias seriam empregadas nas mãos dos governos racistas, eugenistas ou genocidas do futuro.
E, claro, não temos a menor ideia das consequências — físicas e sociais — dessas intervenções genéticas. Os cientistas simplesmente não sabem se a alteração em um gene específico terá outros efeitos colaterais ao longo do tempo. O genoma é complicado e interconectado, e mesmo uma pequena modificação, na melhor das intenções, pode ter grandes desdobramentos.
Por fim, alterar geneticamente embriões humanos também modificará sua linhagem, seus óvulos e espermatozoides, significando que tais mudanças serão transmitidas à sua descendência. Então, no caso dos bebês chineses, não é só o seu genoma que foi modificado, mas toda a sua prole pode ser afetada. No momento, tudo se resume a uma experiência.
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Mais cedo ou mais tarde, tecnologias como a Crispr terão impacto sobre todos nós, não apenas sobre a comunidade científica. Então, mesmo que os cientistas denunciem a pesquisa chinesa, suas alegações de que eles podem se “autorregular” são vãs.
Se e como usar as diversas biotecnologias é algo que tem de ser refletido muito cuidadosamente, com uma discussão ética séria, por todos nós. Apesar disso, o reitor da Harvard Medical School disse que “é hora de deixar para trás [os debates sobre] permissibilidade ética para traçar o caminho até a aplicação clínica (...) para que essa tecnologia avance”.
Como os últimos acontecimentos demonstram, a China é particularmente agressiva em sua intenção de ignorar padrões bioéticos. Apesar dessa condenação para inglês ver dos bebês Crispr, suspeita-se que Pequim esteja usando essa e outras tecnologias para explorar a possibilidade de produzir “supersoldados” com massa muscular mais desenvolvida, maior capacidade cardiovascular e até mesmo uma melhor visão à noite. Isso, por sua vez, provavelmente tentaria alguns no ocidente a reduzir seus próprios padrões bioéticos em nome da segurança nacional. Seria um grande erro.
Não é porque podemos fazer algo que nós devemos fazê-lo. Para evitar a armadilha da tecnocracia, os humanos é que têm de governar a tecnologia, não o contrário. Ao mesmo tempo, temos de fugir de outra cilada, a de nos tornarmos luditas. As novas biotecnologias têm o potencial de curar e prevenir doenças, de promover o desenvolvimento humano — mas apenas se o uso da tecnologia for regido pela moralidade.
As experiências na China, com bebês geneticamente modificados, são só o começo do que poderia dar errado.
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