O Governo Federal vem promovendo, desde 2015, uma diminuição progressiva do financiamento de serviços voltados para usuários de álcool e drogas e para portadores de transtornos mentais graves. Os efeitos aparecem no Mental Health Atlas, projeto da Organização Mundial de Saúde (OMS) e que mostra um retrato das políticas voltadas para o cuidado em saúde mental em dezenas de países.
A publicação é divulgada periodicamente desde 2001 e, a partir de seus resultados, é possível realizar uma análise comparativa com dados anteriores vindos da mesma fonte. No caso do Brasil, os números são reveladores. De forma comparativa, a expansão da rede de Centros de Atenção Psicossocial (Caps) no período entre os dois relatórios (2013-2017) foi pífia: apenas 1,01%, se comparada aos quadriênios anteriores. Entre 2010 e 2014, a ampliação do número de Caps chegou a 36% no território nacional. E, entre 2006 e 2010, foi de 47%. Os dados são do próprio Ministério da Saúde.
A política de saúde mental que vinha sendo implementada desde 2001 (meados do segundo mandato FHC) atua no sentido de promover a mudança do modelo de rede de serviços e seus referenciais, buscando centralizar as ações junto à atenção primária e em serviços comunitários próximos da população.
Independentemente das tendências partidárias, desde a Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira (Lei 10.216/2001) o processo de implantação e ampliação de serviços extra-hospitalares ocorria de forma contínua até 2015. E, ainda assim, a oferta na área de saúde mental já era, sabidamente, insuficiente na quase totalidade do país.
O sucateamento transparece não apenas nos serviços de saúde mental, mas na própria rede básica de saúde
E, à medida que se desacelera a criação de novos serviços, os já existentes não conseguem desempenhar as ações necessárias devido ao aumento na demanda, fragilizando o sistema como um todo. Enquanto este dimensionamento não estiver apropriado, a sustentabilidade do modelo depende de sua expansão.
O sucateamento da rede de saúde mental, através do congelamento de investimentos e do custeio dos serviços por parte do Governo Federal, implicou uma sobrecarga para os municípios e, automaticamente, a retração dos serviços disponibilizados à população.
No caso de Curitiba, por exemplo, este sucateamento se nota por meio da perda da especificidade dos serviços quanto a usuários de álcool e drogas ou portadores de transtornos mentais graves. Essa mudança diminui a qualidade da clínica, dificulta o acesso dos usuários e prejudica a capacidade de interlocução do serviço com o restante da rede de saúde e assistência.
O sucateamento transparece não apenas nos serviços de saúde mental, mas na própria rede básica de saúde, local fundamental para o atendimento de problemas de saúde mental. Um indicador alarmante é a redução drástica do número de agentes comunitários de saúde no município de Curitiba, por exemplo. Dos cerca de mil agentes em 2013, restaram menos de 400 no quadro atual da prefeitura, de acordo com os dados do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde – fato que representa uma tendência nacional.
Leia também: Saúde mental, ideologia e desinformação (artigo de Marcelo Daudt von der Heyde, publicado em 20 de fevereiro de 2019)
Para quem não se recorda, os agentes comunitários de saúde são trabalhadores das unidades básicas – os “postinhos” – que moram na própria comunidade e são responsáveis por identificar precocemente as demandas da localidade. Devido ao fato de estarem inseridos no território e terem a capacidade de perceber rapidamente os problemas de saúde na região, os agentes de saúde conseguem perceber problemas que outros profissionais só teriam conhecimento a partir da procura na unidade de saúde. O agente de saúde, por sua vez, faz a “busca ativa” pelos pacientes, em especial por aqueles que não procuram o serviço de saúde. E é isso que faz toda a diferença.
A fragilização aparece ainda em outros indicadores, referenciados nas duas últimas publicações do Mental Health Atlas, como a diminuição em mais de oito vezes o investimento per capta na área de saúde mental no Brasil. Além disso, em 2014, mais de 2,3% do orçamento da Saúde era destinado à área de saúde mental. Este ano, caiu para apenas 1%.
Há algumas semanas, o Ministério da Saúde publicou nota técnica em que explicita um redesenho da Rede de Saúde Mental – que vinha sendo articulada há aproximadamente dois anos, entretanto com menos publicidade. Em resposta a esta nota, diversas entidades científicas e movimentos sociais – entre elas Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila), Conselho Federal de Psicologia e Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (Abramd) – lançaram notas criticando ou repudiando o conteúdo do documento. Alguns dias depois, o próprio Ministério da Saúde retirou de circulação a informação, mas o debate seguiu.
O consenso criado nestas manifestações mostra que o documento aponta para uma mudança de diretrizes no modelo de atenção, com aumento no financiamento de manicômios – e, por conseguinte, redução do financiamento de serviços comunitários de saúde mental –, comunidades terapêuticas e ambulatórios de psiquiatria.
É necessário evitar a postura ingênua de discutir de forma exclusivamente técnica a indicação ou não de eletrochoques
Há consenso também de que a afirmação de mudança do modelo de atenção ocorre de forma articulada ao subfinanciamento da rede de saúde mental e dos serviços comunitários de saúde mental, como no caso dos Caps, acentuada nos últimos dois anos.
Um dos focos do debate é a afirmação do possível financiamento e apoio a eletroconvulsoterapia – o popular “eletrochoque”, técnica em desuso em todos os países desenvolvidos – como procedimento a ser financiado pela rede de saúde. Ainda que as indicações deste procedimento sejam muito restritas e sua discussão envolva potencialmente um número limitado de usuários da rede, seu financiamento remete a um passado recente e doloroso para milhares de pacientes.
É necessário evitar a postura ingênua de discutir de forma exclusivamente técnica a indicação ou não de eletrochoques. O procedimento foi desenvolvido no país com finalidade punitiva e, via de regra, involuntária. O debate vai além disso.
O eletrochoque era realizado de forma indiscriminada e massificada, remetendo sua aplicação às técnicas de tortura. Outro ponto da engrenagem é a apropriação de procedimentos como esse por instituições hospitalares privadas, financiadas com recursos públicos, sem controle apropriado por parte do Estado e com práticas comuns como permanência por períodos excessivamente longos e submissão a procedimentos compulsórios.
Esta já é a realidade de diversas entidades de internação para usuários de drogas, também instituições privadas, com financiamento público e com controle precário por parte do poder público. Portanto, é necessário ir além da discussão simplista de um posicionamento contra ou a favor à eletroconvulsoterapia. É essencial compreender o contexto em que esse tipo de técnica está inserida.
O discurso pregado de que se trata de um “procedimento científico” ou ainda de que “agora só se utilizarão técnicas com evidências científicas” vende respostas fáceis para uma problemática bem complexa. Para agravar o cenário, ainda coloca uma cortina de fumaça na questão do crescente subfinaciamento das políticas públicas para a área, ainda mais acentuado nos últimos anos.
A mudança de uma política pautada em serviços comunitários para uma referenciada em atendimento hospitalar e ambulatorial não é exatamente uma discussão técnica. Desde o governo Temer, a Associação Brasileira de Psiquiatria passou a integrar a máquina pública, inicialmente através da gestão da saúde mental, no Ministério da Saúde.
Esse posicionamento se acentuou no atual governo em dois diferentes ministérios, em áreas estratégicas das políticas sobre drogas e da saúde mental. É necessário evitar o cinismo de afirmar que o debate deve ser feito fora do âmbito político, principalmente quando esse tipo de discurso é feito por representantes de instituições psiquiátricas – em sua maioria, subsidiadas com recursos governamentais.
O argumento da cientificidade das práticas em psiquiatria esconde o embate de diferentes modelos de atenção, um deles pautado na centralidade do hospital e ambulatório, modelos medicalizantes, ineficazes e historicamente ligados a violações de direitos humanos. O embate dos dois modelos inclui o estrangulamento financeiro sofrido pela rede de atenção psicossocial nos últimos anos, a disputa de espaços na máquina pública e a disputa por hegemonia das práticas de cuidado em saúde mental.
O argumento da cientificidade das práticas em psiquiatria esconde o embate de diferentes modelos de atenção
O governo federal vem procurando sufocar a rede de saúde mental por meio do seu desfinanciamento. As críticas ao modelo em rede e em construção recaem sempre numa nostalgia anacrônica de resgate de um sistema pautado na existência de manicômios e similares.
A transição operada na esfera federal já mostra seus primeiros resultados: o aumento da taxa de suicídios, entre as avaliações de 2014 e 2018, segundo dados do próprio Ministério da Saúde. Qualquer área entende que um modelo de atenção centrado em instituições hospitalares é ineficaz e caro. Além disso, o acúmulo de evidências científicas nas políticas públicas de saúde mental demonstra que é a multiplicidade de estratégias – e não apenas aquelas restritas a certas evidências científicas – que aumentam e potencializam a eficácia das respostas aos problemas de saúde mental.