Nos atuais tempos de pandemia, a discussão sobre o uso da cloroquina tem acalorado os discursos políticos, muitos se espantando com a politização de um medicamento. Alguns defendem que a ciência médica tem seu tempo, que é diferente do tempo político, como se a medicina fosse um sobrenadante das necessidades da sociedade.
Os fundamentos do método científico moderno, conjunto de bases de como os estudos científicos são atualmente conduzidos, foram delineados por Claude Bernard, fisiologista francês, na segunda metade do século 19. Por meio de um conjunto de passos, a partir de um problema, procuramos obter uma verdade científica.
Ocorre que um problema médico não deixa de ser um problema da sociedade. Os problemas da sociedade são resolvidos pelo arranjo social que a sociedade ocidental construiu nos últimos séculos, a democracia, por meio da política. Durante nossa história, vários são os exemplos de casos em que a política influenciou a ciência médica, assim como a ciência médica influenciou a política – olhe o momento que vivemos!
Após expressivas perdas militares por febre amarela na ocupação de Cuba na última década do século 19, Walter Reed liderou uma comissão do Exército americano, que acabou esclarecendo os meios de transmissão da febre amarela e da malária, possibilitando mais tarde a construção do Canal do Panamá. A própria versão sintética da quinina, a cloroquina, tão comentada atualmente, foi desenvolvida em resposta à invasão japonesa das Índias Orientais Holandesas em 1942, que cortou o suprimento da quinina às forças dos Aliados.
Quem não se lembra do célebre discurso de 1962 de Kennedy, “Nós escolhemos ir para a Lua nesta década e fazer as outras coisas...”, atrás de apoio da população à corrida espacial em meio à Guerra Fria – política – contra os russos? O resultado dessa decisão política foi o desenvolvimento de tecnologias de monitorização médica, de diagnóstico e de tratamento.
O desenvolvimento da pílula anticoncepcional teve forte componente político, já advogada em 1912 pela ativista de controle de natalidade e enfermeira Margaret Sanger, que defendia que uma “pílula mágica” melhoraria a saúde da mulher e o seu status social. Foi com o apoio financeiro da filantropista americana Katherina Dexter McCormick que as pesquisas avançaram, com os primeiros estudos determinando sua eficácia no fim da década de 50.
Atualmente as redes sociais também fazem a sua política. Grupos de pacientes com doenças específicas pressionam laboratórios a incluir pacientes com doenças terminais em seus protocolos de tratamentos experimentais, e associações pressionam o governo a autorizar uso de medicamentos para determinado fim ou buscam autorizações judiciais para pacientes fazerem uso de medicações específicas.
A tecnologia de comunicação do mundo atual possibilita uma interação instantânea entre a comunidade científica do planeta, compartilhamento de ideias, de casos clínicos reais, experiências teórico-práticas, o que acelerou a difusão do conhecimento. Mas também deu voz aos não cientistas para emitir suas opiniões, necessidades e contrapontos. Estamos vivendo, com certeza, em toda a história, a maior interação entre ciência e anseios da humanidade.
Os recursos financeiros para o desenvolvimento de pesquisas científicas ou são oriundos de governos, de fundações ou de empresas. Todos esses fomentadores são compostos de pessoas, todas elas com seus próprios interesses políticos; elas são a própria sociedade. A política não influencia o delineamento do estudo científico, a coleta de amostras, as análises estatísticas que desnudarão a verdade científica. Mas a política pode guiar quais estudos acontecerão e a que velocidade. Portanto, não se assuste: a política influencia, sim, a ciência médica.
Fábio Silveira é cirurgião de transplantes do Instituto para Cuidado do Fígado e Hospital do Rocio.
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