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Essencial é transformar o currículo da escola, não pretender "adiantar" a criança para que termine antes a sua escolaridade obrigatória

Meu pai era um cidadão alemão, nascido em Hamburgo, que veio ao Brasil como imigrante na década de 20 do século 20, aos nove anos de idade e fez sua vida em Curitiba. Quando completei 10 anos já estava terminando os anos iniciais da escolaridade, então chamados de ensino primário, numa escola pública no bairro do Água Verde. Mas eu não poderia, por força da legislação, fazer matrícula nos anos finais da educação fundamental, que na época compunham o que se chamava ginásio, pois a lei exigia 11 anos completos para prestar o exame de admissão, espécie de seleção para entrar nesse nível do ensino.

Ele então me levou ao Instituto de Educação do Paraná no centro da cidade e pediu à diretora da Escola de Aplicação uma orientação sobre o que poderia fazer comigo, pois não admitia a idéia de me ver parar de estudar por um ano, à espera da idade regular.

Também não passava pela sua cabeça procurar uma escola particular; como cidadão alemão, pertencente a uma sociedade onde não existia e até hoje não existe escola particular, não imaginou que aqui essa poderia ser a solução. Olhei para a escadaria do prédio do Instituto e senti que era imponente, como se fosse me levar para um mundo diferente daquele que eu conhecia como escola. E levou mesmo. A diretora disse simplesmente que ele poderia fazer imediatamente a minha matrícula no curso complementar, equivalente à quinta série dos anos iniciais. Eu me lembro de tudo o que se passou nesse dia e o melhor de tudo era uma imensa biblioteca no último andar, que me levaram para conhecer. Na outra escola, a biblioteca ficava sempre fechada para os alunos. Apenas as professoras podiam ir lá, buscar um ou outro livro. Lembro-me bem que o máximo da transgressão disciplinar era subir às escondidas a escada da torre e espiar o que seria a biblioteca.

Aqueles estudantes do curso complementar foram pessoas privilegiadas. Nos anos 50 do século 20 tivemos não apenas oito, mas nove anos de escolaridade no ensino fundamental. Acredito firmemente que esse fato fez muita diferença na minha vida.

Meu marido também valorizava extremamente a cultura e a educação. Sua moeda principal era o conhecimento e quando nossa primeira filha estava com cinco anos, novamente me defrontei com a questão da legislação escolar: ela já sabia ler e escrever, mas o pai não aceitava a idéia de matricular a menina em escola particular, que na época era destinada à elite. Historiador e pesquisador da cultura brasileira, ele sabia que a educação que ela recebia em casa, não sendo elitista, certamente criaria um choque com o ambiente da escola particular da época. Eram os anos 70 do século 20. Uma educação democrática radicalmente coerente não admitia culto ao sucesso ou ao dinheiro. Certa vez, anos mais tarde, não permitiu que ela fosse a uma festa de 15 anos de uma colega, pois pelo sobrenome ele sabia que o dinheiro da família vinha da exploração das terras dos índios e, portanto, estava "sujo de sangue".

Sem saída, fui ao secretário da Educação da época pedir para destinar uma escola pública, recém-construída, à finalidade de estágio da Escola Normal, com o que se tornaria uma escola experimental, com um currículo capaz de atender as crianças em suas necessidades pedagógicas, sem constituir a idade o fator principal de sua classificação, mas nunca antecipando um currículo existente, nem encurtando a vida na escola.

Eu já sabia, mas conferi nessa prática profissional que as crianças que aprendem a ler e a escrever praticamente sozinhas, muito antes de entrar na escola, não são superdotadas, mas sim têm um ambiente favorável ao letramento. Aprendi também o que muito mais tarde as teorias cognitivas de aprendizagem me confirmaram: que ninguém é superdotado nem infra dotado, pois as inteligências são múltiplas e ninguém é dono de todas elas. Um currículo de escola precisa preocupar-se com a inteligência espacial, musical, técnica, motora, sinérgica, emocional e outras, além da inteligência verbal e da lógica que as escolas tradicionalmente avaliam como sendo as únicas necessárias.

A questão da legislação permanece sem o tratamento adequado. Quando uma lei federal de 2006 ampliou a escolaridade obrigatória no Brasil para nove anos e não mais apenas oito, as mantenedoras não entenderam a proposta de inclusão social no mundo do conhecimento por parte daquelas populações que não têm acesso a esse mundo, e que representam a maioria dos alunos, tanto de escolas particulares quanto públicas. Elas trabalham somente com informações, sem chegar ao conhecimento e muito menos à aprendizagem do pensar.

A condição essencial é transformar o currículo da escola, não pretender "adiantar" a criança para que termine antes a sua escolaridade obrigatória. Será que a ideologia de consumo contaminou até mesmo o tempo da vida? Ou será que a escola é tão ruim que todo mundo quer sair dela o quanto antes?

Pois essa história me pegou novamente. Meu neto tem cinco anos e a grande maioria de seus colegas está sendo matriculada no primeiro ano dos nove anos obrigatórios, contra a lei. Quase nenhuma escola criou um currículo com mais vida e conhecimento. Ouvi dizer que uma diretora infeliz perguntou às estagiárias de Pedagogia:

– Mas por que tanta confusão? Basta trocar a plaquinha da sala do Pré III por uma plaquinha do primeiro ano...

Será que muitas escolas, nesses últimos quarenta anos, cometeram o crime histórico de permanecer no imobilismo de praticar um currículo que não considera as mudanças da sociedade?

Mas o mais espantoso é que pegou fácil em uma determinada classe social a idéia de "adiantar" as crianças para não "repetir" o pré. E insidiosamente foi utilizado o argumento de que a criança está preparada para enfrentar o ensino médio aos 13 anos de idade porque é superdotada. Já dizia Caetano Veloso: é que Narciso acha feio o que não é espelho...

Lílian Anna Bendhack Wachowicz, pós-doutora em Administração Educacional, é professora.

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