Será que daqui a 50 anos, as crianças terão lembranças dos natais que vivem hoje?!

CARREGANDO :)

Os primeiros indícios do Natal não eram no comércio. Vinham às vezes de muito longe, enviados por algum amigo que, mal começado dezembro, corria ao Correio para encaminhar seu cartão de "boas-festas". Ainda não havia, é claro, os cartões virtuais, até mesmo esses caindo em desuso.

Depois – ô dia feliz! – surgia, diante da Ghignone, uma pilha de livrões embalados em envelope de papel craft contendo – pasme! – o "Almanaque do Tico-tico" para o ano seguinte... Os almanaques ainda não haviam sido desvirtuados – nos dias de hoje, qualquer edição fora da numeração é "almanaque".

Publicidade

E faziam-se passeios. Chamava-se "passear" andar pelas ruas sem necessidade de um objetivo consumístico. E sem pavor das situações de pânico decorrentes da assim chamada "diferença de renda" no país.

Um era a pé – sim, se é perto, pra que carro? – pelo Centro. Algumas lojas tinham bonecos animados de Papai Noel que voltavam todo ano às vitrines. Meio desbotados às vezes, mas o encanto dos movimentos mecânicos era o mesmo. Viam-se também presépios beirando o surrealista, com trenzinhos elétricos e outras traquitanas. Vitrines com os brinquedos novos da Estrela – (suspiro) –, nada de chinesises eletrônicas, nas lojas prestigiosas com saudosos nomes regionais, Prosdócimo, Hermes Macedo e outras.

Presépio tinha também nas casas. Figuras que saíam de caixas onde descansavam o ano inteiro e compunham cenas feitas com areia – peneirada ou de praia – espelhinho para representar um laguinho, barba-de-velho para a vegetação e outros truques cênicos. Faltava às vezes alguma figura, perdida ou quebrada no ano anterior, mas o que que tem, puxa vida?!

E tinha o passeio de carro. Os pais colocavam os filhos no carro – no nosso caso, uma vistosa Nash Airflyte – e iam aos bairros ver os jardins enfeitados com luzes coloridas, mais presépios... Muito presépio, sim, em toda parte, nas igrejas principalmente – o aniversariante não andava tão esquecido ainda...

Tinha o lado contraditório, é claro, como em tudo na vida. Entendo que uma celebração de nascimento não deveria significar morte para ser vivo algum e eram sacrificados anualmente uma árvore e um peru. Raros eram os caminhões vendendo "pinheirinhos" nas praças centrais – o mais comum era sair-se pelas áreas rurais mais próximas em busca de um. Que, cortado, era levado para casa e ornamentado. Passadas as festas, o "pinheirinho" ficava num canto do quintal secando, para depois ser cortado e queimado no fogão a lenha.

Publicidade

E a outra vítima do Natal era algum pobre peru. Também era procurado nas imediações da cidade, criados para a ocasião. Nesse tempo, não havia nada de mais em vender o peru. O coitado do bicho era levado para casa, onde ficava – e esse é o lado trágico da coisa – até a véspera, quando então era embebedado na marra com vinho; depois degolado, depenado e estripado. Aqui defendo os tempos de consumismo atuais: o serviço sujo é feito profissionalmente.

Havia uma série de comezainas que hoje estão no comércio o ano inteiro, mas naquela época só nas imediações das festas natalinas: nozes, avelãs e amêndoas; figos, damascos e uvas – todos em forma de passa, desidratados. E panetone, e stolle, e rosca folhada e glaceada... "fatia dourada", também dita "rabanada", era coisa igualmente dessas festas.

No dia 24, à tarde, o cheiro do peru assando no forno só aumentava a expectativa para a noite – ganhar e abrir os pacotes com presentes. Só os ricos podiam pagar um Papai Noel "de verdade" para ir em casa com seu saco. Depois, era comer o peru e ir dormir, para acordar cedo no dia seguinte e brincar com os brinquedos novos...

O consolo da festa passada era que, uma semana depois, havia outra, a do ano-novo. Menos aguardada – não tinha presentes, ora essa – e sem o lance trágico do peru, visto que a comilança era articulada sobre algum bacalhau pescado em águas de Portugal.

E lá pelo dia 6 de janeiro, os Reis Magos iam embora, de passagem deixando os presentes para as crianças do Rio da Prata. Com a ida do Gaspar, do Belchior e do Baltazar para as caixas e estas para os armários por um ano, a expectativa passava a ser o Coelhinho da Páscoa.

Publicidade

Será que daqui a 50 anos, as crianças terão lembranças dos natais que vivem hoje?!

Key Imaguire Junior é professor aposentado do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFPR.