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Inicio esta crônica de Natal do alto do septuagésimo terceiro quilômetro de uma das tantas rodovias que cortam nosso Brasil, encrustado no meio de uma serra, entre uma Fiorino branca e um Cruze prateado, rodeado por carretas compridas lancetando monóxido de carbono e um barulho insuportável de motor.
Já é Natal faz uma hora e desde o fim da tarde do dia 24 (mais precisamente, às 18h10) eu e mais milhares de motoristas formamos uma estática fila quilométrica, devido a um bloqueio total na via causado por um acidente. Menos de dez quilômetros à frente jaz um caminhão-tanque tombado, responsável pelo derramamento de combustível que iniciou um incêndio de grandes proporções (não se sabe proporcionalmente comparado a quê) e inundou a pista com a carga líquida inflamável. Era por volta das 19 horas quando os bombeiros passaram por nós, com suas sirenes gritando pelo acostamento, assustando os engraçadinhos que ousavam trafegar por ali.
A concessionária da rodovia informa em tempo real o andamento das atividades por meio de uma rede social. Foi a primeira vez que percebi que informar mal em tempo real tornou-se uma tendência na sociedade da informação e fiquei seriamente em dúvida se isso não seria pior do que simplesmente não informar. Faz sete horas que levam a efeito a “operação transbordo”, seja lá o que isso quer dizer. Tem a ver com tirar o combustível da pista para evitar o risco de explosão. Ultimamente, coloca-se “operação” na frente de qualquer nome para ficar mais importante, como se isso transformasse a atividade em uma espécie de cruzada em prol da sociedade. Estamos aqui transbordando a pista, enquanto vocês aí na estrada transbordam de raiva!
No auge da minha raiva, tento internalizar um pouco do sentimento de Natal: pelo menos não me falta saúde, não teve arrastão, estou abrigado em um carro confortável, com assento em couro, no auge da vida, sem doenças crônicas, dor nas costas, ansiedade, claustrofobia ou qualquer outra coisa. De repente, tudo não parece tão ruim assim... Sinto até aquela pontinha de culpa por maldizer meu aprisionado estado, por ter o que tenho e ainda assim reclamar, culpa até mesmo por, supostamente, elevar a dramaticidade da situação.
Chegamos ao dia 25 de dezembro idealizando as reuniões familiares, com peru e cheesecake, piada do pavê, touquinha do Papai Noel e presépio montado na sala carregada de presentes. Uma imagem que se estampa no retrato para a posteridade, mas não afasta a dura realidade. E, embora não a afaste, atesta que os infortúnios não são suficientes para nos abater. A família, apesar dos desentendimentos ao longo do ano, reúne-se feliz em torno da mesa.
Culpabilidade relâmpago; durou exatos cinco minutos até me lembrar do destino aonde eu deveria ter chegado há pelo menos cinco horas, a tradicional ceia de Natal em família, com comida farta, companhia agradável, boas risadas, trilha sonora e filmes natalinos. Percebo, então, que, se o Natal é um tempo em que agradecemos por tudo o que temos, nossas expectativas (já frustradas ou ainda em curso) sempre nos fazem dar uma espiadinha naquilo que poderíamos ter. Talvez seja do equilíbrio sobrenatural entre essas duas visões que se forme um autêntico espírito natalino: gratidão pelo que se tem somada ao desejo sincero em ter ainda mais no ano que vem (críticos dirão – cobertos de razão – que o Natal é mais sobre o ser que sobre o ter, mas não diga isso para alguém que andou cinquenta metros de estrada nas últimas oito horas).
Em uma de minhas descidas à beira da estrada para esticar as pernas e observar as estrelas de Natal que timidamente se mostram no céu, conheço o Senhor Piedoso, o simpático motorista do carro de trás. Entre as desesperanças com nossa situação e o bom e velho papo sobre futebol, aprendo que nem mesmo em nossas desgraças estamos completamente sozinhos. Retorno para o carro rejuvenescido e pronto para encarar mais algumas horas de espera.
Em meio ao tedioso transcorrer das horas, observo o mundo lá fora. O pai acode a filhinha do carro ao lado que, com mal-estar, sai às pressas para vomitar. O casal, de braços dados, aproveita para “passear” à luz do luar. Até o Senhor Piedoso volta à cena para oferecer um pouco de água. Enquanto isso, os motoristas aflitos compartilham nas redes comentários virtuais denunciando o ocorrido. Em meio à desgraça, unimo-nos; reacende-se a fagulha da comunidade. É então que percebo o milagre de Natal se formando naquelas primeiras horas da escura madrugada do dia 25.
Talvez já ludibriado pelo cansaço, uma epifania natalina se forma clara em minha mente. Foi uma série de desgraças que nos trouxe ao quilômetro 73. A desgraça individual do motorista do caminhão-tanque que tombou a carreta, quer por imprudência, quer não. A desgraça da faísca involuntária formada no contato da carroceria com o asfalto, que somada à carga inflamável iniciou o incêndio. A desgraça do despreparo das equipes de apoio em promover uma liberação mais eficiente da via. E, enfim, a desgraça individual de cada história de vida que passava naquele momento pela estrada e foi afetada pelo infortúnio. Um sentimento legítimo de inconformismo com estas e outras desgraças da vida é o que nutre a expectativa de circunstâncias melhores no futuro.
O Natal é também um pouco disso... Chegamos ao dia 25 de dezembro idealizando as reuniões familiares, com peru e cheesecake, piada do pavê, touquinha do Papai Noel e presépio montado na sala carregada de presentes. Uma imagem que se estampa no retrato para a posteridade, mas não afasta a dura realidade. E, embora não a afaste, atesta que os infortúnios não são suficientes para nos abater. A família, apesar dos desentendimentos ao longo do ano, reúne-se feliz em torno da mesa. O pai bem que queria comprar algo melhor para a filha, mesmo assim ela fica genuinamente encantada com o seu presente. O tio, mesmo desempregado, não abre mão de participar do amigo secreto. Embora a avó já não consiga mais participar devido à saúde frágil, todos ligam por vídeo para expressar um pouco de amor. E tantas expectativas que não se concretizaram no ano que se passou são automaticamente renovadas para aquele que em breve se iniciará. A foto perfeita ao pé da árvore de Natal pode não revelar as muitas desgraças que escondemos dentro de nós, por acharmos que não combinam com o Natal. Mas não há feriado melhor para reconhecê-las. Pois é na intolerância com as desgraças da vida que somos despertados para a Graça que veio ao mundo; somos apresentados ao Verdadeiro Natal.
Feliz Natal! Now All Is Well.
Leonardo Dantas Costa é advogado e autor de “Delação Premiada” e “Reflexões em tempo de pandemia”.