Em tempos de lockdown para reduzir a curva (da segunda onda da Covid-19, nesse primeiro trimestre de 2021), uma das atividades autorizadas pelo status quo “científico” é assistir à televisão. Claro, apenas as pessoas da família, sem aglomerações, observada a individualidade dos baldes de pipoca, e servida preferencialmente sem manteiga e com pouco sal, já que obesidade e distúrbios de pressão são altamente prejudiciais à saúde.
Nesse contexto, uma boa pedida é rever os chamados clássicos – essa semana foi Ben-Hur, na versão com Charlton Heston. Uma primeira questão que chama a atenção é o tempo da narrativa dos filmes mais antigos, de uma velocidade tal que gera certa ansiedade no espectador contemporâneo (para os padrões atuais, aquela cena da corrida de bigas é uma eternidade). Uma segunda questão, mais provocativa: Ben-Hur era um negacionista?
Na perspectiva do léxico, “negacionismo” é o ato de negar um fato ou conceito que pode ser verificado empiricamente. De certa forma, então, o negacionismo é um mecanismo de escape psicológico, uma espécie de fuga de uma realidade (ou verdade) desconfortável. O negacionista seria, então, um tipo especial de niilista, um cético que nega os valores (ou critérios) que fundamentam a noção de verdade, rejeitando qualquer realidade que lhe cause dissabor.
Em nossos dias, entretanto, o termo tem um significado mais específico, sendo aplicável para todo aquele que discorda de certas opiniões, ou melhor, discorda das opiniões de certas pessoas – justamente as pessoas que “estão certas” porquanto falam em nome da “certeza científica”. Por exemplo, “negacionista climático” é aquele que discorda das teorias dominantes na ecologia e climatologia, em especial sobre a inevitável destruição do planeta que decorre da presente ação (econômica) humana.
Aliás, apesar de o senso comum compreender o negacionismo como um movimento essencialmente anticientífico, cabe explicar que não é (exatamente) o caso. A expressão nasce com acentuado cunho político: “negacionista” é quem tem apreço pelo Terceiro Reich e acredita na versão nazista da história sobre o genocídio nos campos de concentração. De fato, conforme a literatura especializada, a chamada negação do Holocausto teve início, enquanto fenômeno cultural, na década de 1970. Nasciam, naquele momento, os Holocaust deniers, mais tarde denominados, apenas, deniers. Em bom português, negacionistas.
É neste contexto que os trabalhos posteriores passam a incorporar a expressão. No texto “Denialism: what is it and how should scientists respond?”, publicado no Jornal Europeu de Saúde Pública (2009, vol. 19, n.1, 2-4), o termo envolve o “uso de argumentos retóricos para dar a aparência de legitimidade ao debate”, sendo possível traçar um “paralelo histórico com o Holocausto, outra área onde as evidências são avassaladoras, mas onde alguns continuam a semear dúvidas” (trechos selecionados em tradução livre).
Há uma questão interessante sobre o referido artigo, que foi publicado pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, uma nação essencialmente cristã. Conforme o escritório de estatísticas oficiais, no censo de 2011 59,5% da população se declarou cristã (outros 7,6% da população se apresentam como islâmicos, hindus, sikhs, judeus e budistas).
Assim, é curioso o fato de que o referido artigo, apesar de defender a legitimidade do chamado overwhelming consensus (“consenso esmagador”), abandona o uso das expressões a.C. e d.C. (antes/depois de Cristo) para tratar do tempo histórico com uso das expressões AEC e EC (antes/depois da “era comum”). Então, é bom explicar aos desavisados que, conforme os “intelectuais”, não vivemos no ano 2021 d.C., mas sim em 2021 EC (era comum).
Aparentemente, medir o tempo a partir da representatividade de Jesus Cristo é algo “ultrapassado”. Assim, parece haver uma certa seletividade no consenso esmagador que pode ser admitido pelos intelectuais. É nesse contexto que se deve compreender o absurdo que perpassa o debate público contemporâneo e o uso indiscriminado da expressão “negacionista”: ou você concorda com o status quo ou você é um nazista. Ponto final.
Para seus defensores desse tipo de visão de mundo, inclusive, essa lógica não é um devaneio totalitário, excludente e sectário. É simplesmente ciência. Por óbvio, tal situação é bastante problemática do ponto de vista de uma sociedade supostamente democrática que supostamente valoriza a liberdade de expressão. É ainda é mais problemática sob o ponto de vista de qualquer pessoa que conheça qualquer coisa sobre a história da ciência e seu paradigma evolucional.
A ciência, conforme seus próprios dogmas, é um processo de construção de perguntas (e não de respostas, como supõe o senso comum). Nas palavras de Karl Popper em O mito do contexto, “o conhecimento científico é hipotético e conjectural”, e tal assertiva não decorre apenas das questões mais fundamentais sobre os limites do conhecimento, mas resulta de uma constatação bastante simplória: as respostas serão sempre provisórias porquanto condicionadas em um tempo/espaço.
Cabe retornar à Ben-Hur, que atualmente seria classificado pelo status quo como um “negacionista político” (afinal, como leciona o status quo, há uma relação próxima entre quem desconfia da ciência e quem desconfia de instituições, tal qual a OMS, em exemplo aleatório), o que parece ser exatamente o caso de Ben-Hur, que simplesmente não aceitou as decisões de Messala, o chefe político encarregado pela gestão da situação, nem se conformou com a má sorte que lhe acompanhou.
E aqui chegamos, finalmente, a uma matéria publicada no alemão Der Spiegel em 30 de março: “AstraZeneca apenas a partir dos 60 anos; para os mais jovens por sua própria conta e risco”. Por que vacina AstraZeneca “apenas a partir dos 60 anos”?Porque, conforme a matéria, há estudos que apresentam uma conexão entre o imunizante e casos de trombose venosa cerebral (tradução livre). Por tal motivo, caso os jovens decidam se vacinar, será por “sua própria conta e risco”.
Talvez, e apenas talvez, haja alguma racionalidade em querer debater a vacinação coletiva com produtos experimentais. Talvez nem todas as refutações estejam no mesmo nível de estupidez dos Holocaust deniers. Talvez seja necessário promover um espaço legítimo para as discordâncias, no sentido de manter em atividade as estruturas coletivas de reflexão e debate público.
Simplesmente taxar de “negacionista” não é apenas um ato de ignorância epistemológica, arrogância intelectual e imaturidade psicológica, mas é fazer uso de uma falácia lógica tão simplória quanto conhecida, o reductio ad hitlerum. É por isso que cabe um alerta para aqueles que são orgulhosamente ignorantes: é simplesmente ridículo se pretender intelectual, defensor da ciência, e não conseguir argumentar fora do universo dos sofismas e falácias.
Por fim, para acrescentar alguma humildade no debate, lembremos de Neil deGrasse Tyson em Morte no buraco negro: “por maior que seja nossa confiança em nossas observações, nossos experimentos, nossos dados ou nossas teorias, devemos voltar para casa sabendo que 85% de toda a gravidade no cosmos provém de uma fonte misteriosa, desconhecida, que permanece completamente indetectada por todos os meios que já planejamos para observar o universo”.
Nada além do que um outro sujeito qualquer já tinha dito: só sei que nada sei.
Assis José Couto do Nascimento é advogado, especialista em Direito Público, mestre em Direito Constitucional e autor de “Constituição: o jurídico, o político e o discurso. A PEC 157/2003 e o debate sobre a tese da obesidade da Constituição”.
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