Uma notícia que circulou há duas semanas na cidade de São Paulo revela o grau de decadência econômica e moral a que chegou parte do setor público no Brasil. Trata-se da falta de caixões para sepultar os mortos e do suborno exigido por funcionários da prefeitura para prestar serviços funerários e fazer os enterros.
Na cidade de São Paulo a maior e mais importante do país o serviço funerário é estatizado. A prestação de serviços funerários, a administração dos cemitérios públicos e a fiscalização dos cemitérios particulares são competências do Serviço Funerário do Município de São Paulo, uma autarquia da prefeitura. Os serviços compreendem o fornecimento de caixões, a ornamentação das câmaras mortuárias, a instalação e manutenção dos velórios, a concessão de sepulturas, os crematórios e outros.
Além da decadência moral, a incompetência do governo para desempenhar tarefas triviais chega a desanimar. A falta de caixões e a corrupção envolvendo o processo de velório e enterro dos falecidos é de causar asco. Mas esse tipo de drama não é privilégio da cidade de São Paulo nem do partido que governa o município; isso é o retrato do Brasil inteiro e de todos os partidos.
As notícias divulgadas sobre o ocorrido em São Paulo me lembram artigo que publiquei neste jornal há alguns anos, sob o título "Amargura entre Nádegas", no qual eu me referia a trecho de entrevista concedida por Roberto Campos à revista Playboy em maio de 1987. Dizia ele: "Eu acreditei no planejamento. Hoje acredito que a economia é demasiado complexa para as previsões e intuições dos planejadores. Não há baterias de computadores, não há gênios tecnocráticos capazes de prever e agir a tempo de corrigir o mercado. E eu prefiro as incorreções e as imperfeições do mercado às imperfeições do burocrata. Eu acreditava no intervencionismo do planejador e na benevolência do Estado. O Estado sabia prever e devia prover. Hoje eu acho que o Estado não sabe prever e não é capaz de prover. Aliás, o Estado é uma entidade abstrata, a rigor não existe. O que existe são funcionários, em carne e osso, com interesses às vezes mesquinhos e com apetites às vezes tirânicos".
Uma ressalva: não se pode culpar o prefeito Fernando Haddad. Ele assumiu há pouco tempo e herdou um gigante estatal, cujos problemas nenhum prefeito conseguirá consertar em pouco tempo... talvez nem em muito. Essas estruturas estatais grandes demais são imunes às vontades pessoais de seus governantes, além do que a ineficiência do setor público e a corrosão moral de seus burocratas são problemas históricos e endêmicos.
Diante de tudo isso, é engraçado que ainda haja pessoas se perguntando por que a população saiu às ruas. As manifestações representam um ato de desespero diante de um gigante insensível que maltrata quem o sustenta e não dá sinais de melhorias substanciais. As passeatas representam um grito e servem a dois fins: externar o tamanho da insatisfação e pressionar os políticos para fazer algo em favor das mudanças necessárias.
A ineficiência e a corrupção, não contentes em infernizar os vivos, resolveram infernizar também os mortos. No Brasil, essas duas pragas seguem o lema: "Do berço ao túmulo, sempre com você".
José Pio Martins, economista, é reitor da Universidade Positivo.
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