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Opinião do dia 1

No Brasil da Constituinte

As duas décadas que nos separam da quarta-feira em que o Congresso Constituinte encerrou suas atividades parecem conformar eternidade, não só pelas profundas mudanças ocorridas no país, como pelas transformações radicais verificadas em todo o mundo. Vivíamos os tristes anos de 1980, depois designados "década perdida", com sucessivas crises internacionais, com a derrocada do socialismo, e com a perplexidade do mundo que se desatrelava das certezas precárias da Guerra Fria.

Sem contar com o regionalismo e a com a proliferação de blocos econômicos, não havia sequer a Organização Mundial do Comércio, longe que estávamos da conclusão da Rodada do Uruguai de 1994. A instantaneidade da informação e o avanço das comunicações desabavam sobre as sociedades e mostravam quão inovadora poderia ser a "aldeia global" prevista por Mc Luhan, com mudanças que alteravam valores e comportamentos. Foi nesse roldão de novidades e de descobertas que o fim de século-milênio viu concretizar-se a sociedade "laissezfaire@laissezpasser" e sua mundialização on line.

Na América Latina, o tempo foi de restauração paulatina das democracias, com o fim da longa treva de governos autoritários. Os países, atônitos pela perda de paradigmas, buscavam ansiosos economia de mercado e liberalismo, de acordo com o espírito do tempo em que se vivia e mesmo pela falta de opções. No entanto, a retórica e os argumentos seguiam o velho discurso socialista, a erodir-se com as ruínas do muro de Berlim e nas memórias pouco edificantes da Cortina de Ferro. No Brasil, vivia-se o desvario da inflação e da estagnação econômica, de sucessivos planos com nomes de ministros voláteis, das Ufir e dos indexadores das coisas sem preço, ou com muitos preços, que mudavam "do dia para o dia". Era a desvalorização monetária mensal de três dígitos a que o país sobreviveu. Passadas as benesses do milagre brasileiro, o aviltamento da vida no campo produzia êxodo rural sem precedentes, a constituir o inchaço patológico das cidades e a gerar a ocupação desordenada e desenfreada do território. Com o refazer constitucional, todos reivindicavam seu espaço e queriam ver-se de alguma forma incorporados com seus direitos no texto da Lei Maior. Nesse cenário polimorfo e desordenado é que se deu a Assembléia Nacional Constituinte, na qual se vêem refletidas todas as contradições, tendências e tensões do país que se queria passar "a limpo".

A contar com a perspectiva do tempo, verifica-se que a par de conquistas extraordinárias que o Brasil realizou nas últimas décadas, de sua notável estabilidade e solidez institucional, com todos os vícios e com todas as virtudes de sua Constituição, resta ainda grande percurso a percorrer, para concretizar-se o querer virtuoso da Carta de 88. Em detrimento de seus devaneios e de notáveis impropriedades, há que implantar-se sem demora as reformas constitucionais necessárias para adequar o Brasil a seu tempo circunstante. No entanto, vinte anos já se passaram e o aggiornamento constitucional pelo qual o país anseia permanece esperança, sob os eflúvios inabaláveis de nossa fé sebastianista.

Conquista da cidadania, a galvanizar interesses dos mais diversos, como decorrência da realidade sincrética e plural de seu povo múltiplo, a Constituição de 1988 representa com particular ênfase o Brasil de ímpeto criativo e de esperança renovada. Ao final da sessão solene para a promulgação da nova Constituição, em 5 de outubro de 1988, no Plenário engalanado da Câmara Federal, uma chuva de papéis picados explodia da alegria espontânea dos constituintes, emulados em seu entusiasmo pela palavra forte do Doutor Ulysses: "Está promulgada a Constituição da liberdade!". Rasgava-se com desafogo a papelada inútil e esquecida pelas bancadas e se cantava sem pompa e circunstância o Hino Nacional. Houve quem não dissimulasse uma ou outra lágrima, vertidas ao certo do justo sentimento de completude do dever. Já era noite em Brasília e amanhecia o novo Brasil. Meninos, eu vi.

Jorge Fontoura é doutor em Direito, professor titular do Instituto Rio Branco, Itamaraty, e consultor do Conselho Federal da OAB. Foi assessor legislativo da Assembléia Nacional Constituinte (1986/1988).

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