No dia 17 de maio de 2024, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, suspendeu os efeitos da Resolução 2.378/2024 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que proíbe o médico de realizar o procedimento de assistolia fetal antes do procedimento de interrupção da gravidez (aborto), nos casos de estupro, quando houver probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas.
A assistolia fetal é o ato médico que tem por objetivo matar o feto (feticídio). Para realizá-la, injetam-se substâncias diretamente no coração do feto. Geralmente, é injetada uma solução de cloreto de potássio e de lidocaína. Em seguida, o feto morto é retirado de dentro do corpo da mãe.
Ao liberar o feticídio, Alexandre de Moraes afirmou que existiriam “indícios de abuso do poder regulamentar” por parte do CFM ao estabelecer a norma sobre o aborto. Segundo ele, a resolução teria fixado uma “condicionante aparentemente ultra legem para a realização do procedimento de assistolia fetal”, nos casos de aborto decorrente de gravidez resultante de estupro. Contudo, esse argumento é frágil, como veremos a seguir.
O CFM é autarquia federal a quem compete disciplinar e fiscalizar a ética médica em todo o território nacional, e isso pode incluir normas relativas ao procedimento do aborto. Essa atribuição está prevista expressamente na Lei 3.268/57, que dispõe sobre os Conselhos de Medicina e dá outras providências. O Artigo 2º do documento estabelece que o “conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina são os órgãos supervisores da ética profissional em toda a República e ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente”. No mesmo sentido, o Decreto 10.911/21 estabelece que compete ao Conselho Federal de Medicina compete expedir normas para o desempenho ético da Medicina.
Além da mencionada legislação, a Lei 12.842/13 esclarece que é objeto da atuação do médico a saúde do ser humano e das coletividades humanas e obriga o médico a agir em benefício da saúde com o máximo de zelo, com o melhor de sua capacidade profissional e sem discriminação de qualquer natureza. Da leitura da referida normativa nacional, vê-se que, pela via legislativa (autorizada pelo art. 24, XII, da Constituição Federal), a União outorgou ao CFM a competência (poder-dever) para tratar de assuntos relacionados ao exercício moral e ético da medicina e não há dúvida que o aborto se insere nesse contexto.
Nessa linha de raciocínio, conclui-se que a delegação de tal poder regulamentar ao CFM decorre expressamente da lei, que foi editada com base em previsão constitucional (art. 24, XII, da CF/88). Portanto, não há que se falar em abuso de poder regulamentar por meio de inserção de condicionante ultra legem. Pelo contrário, com essa resolução, o CFM, absolutamente dentro de suas atribuições, apenas disciplina ato médico de assistolia fetal usada no caso do aborto, assistolia que é considerada imoral e antiética, nos casos em que houver probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas.
Se o objetivo da mãe é interromper a gestação decorrente de estupro, se o feto tiver mais de 22 semanas, será necessário antes tentar retirá-lo com vida, por meio da indução ao parto. Não é ético matar o bebê sem que haja previamente essa tentativa. O objetivo da mãe é interromper uma gravidez decorrente de um crime e não matar o feto. Interrompe-se a gravidez, preserva-se a vida do feto, e realiza-se a entrega para adoção.
Chama atenção a incoerência na decisão do ministro Alexandre de Moraes, que afirma existir abuso do poder regulamentar por previsão de condição não prevista na lei, ao mesmo tempo em que se imiscui no mérito administrativo para, substituindo-se à autarquia, em ato de sua competência, autorizar o exercício de um ato imoral e antiético na área de medicina, em total afronta ao princípio constitucional da separação dos poderese ataque ao sistema constitucional de proteção à vida e à saúde do ser humano, que deve existir sem discriminação de qualquer natureza.
O segundo ponto que causa estranheza é o fato de que, ao se imiscuir no mérito administrativo, o que é vedado, repita-se, o faz justamente determinando a observância de uma cartilha lançada pela Organização Mundial de Saúde. Uma cartilha, um documento sem qualquer valor legal e jurídico, cuja observância viola ao mesmo tempo a Constituição Federal, as leis e o decreto acima mencionados, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Decreto 678/92), a separação constitucional dos poderes, o direito à vida e à saúde, a proibição da tortura, e, ainda, a própria soberania brasileira, tão cara para o nosso ordenamento que é prevista no primeiro artigo, no primeiro inciso, do texto constitucional.
No plano fático, as consequências desastrosas dessa decisão perversa são o assassinato de bebês, seres vulneráveis; a permissão de método de tortura, cruel e desumano; e o rebaixamento do valor da vida de um ser humano, que passa a valer menos do que os animais.
De fato, a Resolução 1.000/2012, do Conselho Federal de Medicina Veterinária, prevê que o uso de cloreto de potássio na eutanásia de animais é um método inaceitável. Em função de ser um íon cardiotóxico, sua ação consiste na excitação das fibras nervosas do tipo C, o que promove extrema dor antes do resultado morte. Portanto, não pode ser utilizado em hipótese alguma, estando os médicos veterinários e operadores sujeitos a punições previstas na legislação quando da sua utilização.
A propósito, cumpre registrar que a proteção dos animais contra atos cruéis já foi objeto de apreciação do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 4983, no qual se reconheceu que a norma constitucional que veda a crueldade contra os animais deve ser considerada norma autônoma. Vale a pena transcrever breve trecho do voto do ministro Luís Roberto Barroso sobre o tema: “Portanto, a vedação da crueldade contra animais na Constituição Federal deve ser considerada uma norma autônoma, de modo que sua proteção não se dê unicamente em razão de uma função ecológica ou preservacionista, e a fim de que os animais não sejam reduzidos à mera condição de elementos do meio ambiente. Só assim reconheceremos a essa vedação o valor eminentemente moral que o constituinte lhe conferiu ao propô-la em benefício dos animais sencientes. Esse valor moral está na declaração de que o sofrimento animal importa por si só, independentemente do equilíbrio do meio ambiente, da sua função ecológica ou de sua importância para a preservação de sua espécie”.
Como se vê, os animais não devem ser reduzidos à mera condição de elementos do meio ambiente e o sofrimento deles importa por si só. Diante desse cenário, restam duas perguntas. O sofrimento dos bebês importa? Quem protegerá o feto da crueldade humana?
Bianca Cobucci Rosière é defensora pública e mestre em políticas públicas.
Deixe sua opinião