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O ano começa com ventos, procelas e outros tantos infortúnios. Também a literatura padece com a morte de J. D. Salinger, o mais cultuado autor norte-americano depois de Hemingway. Remanescente da geração de escritores míticos do pós-guerra, apesar da considerável obra, consagrou-se como autor de um livro só, O apanhador no campo de centeio, ou, talvez menos, apenas o pai do Caulfield, a personagem central, que transcendeu a obra para devorar tanto a criatura como o criador.

Por aqui, a geração Leminski, que amava os Beatles e os Rolling Stones, da contracultura e da transgressão dos anos de 1970, idolatrou tanto o livro quanto a sua personagem avassaladora, o jovem narrador dos dissabores existenciais. E não bastava ler, era necessário andar com um exemplar à mão. Em verdade sobre aborrecentes, mas não destinado a eles, o texto retratava devaneios e desajustes de um teenager insatisfeito, desgostoso de tudo, desde a condição humana até a sua própria efervescência hormonal. Coisas previsíveis, clichês inevitáveis de um tempo da vida, mas leituras que lancetavam angústias não só da adolescência, algumas fadadas a se perpetuarem, alojadas na inconsciência da idade adulta. Caulfield não gostava dos mais velhos, de seus códigos e de seus embustes, posto que destino inexorável dos sobreviventes.

Contando com matéria-prima pouco original, basta lembrar os heróis imberbes de Goethe, Hesse ou Dickens, The catcher in the rye, como no original, tornou-se clássico da literatura sem-fronteiras. O segredo parece simples e consistia em dar contornos narrativos a inquietações psicológicas importantes. Importantes no sentido em que a expressão é utilizada pelos psiquiatras quando querem dizer graves. Isso chegou a originar o rótulo de ser o livro maldito, nocivo à saúde mental e atentatório ao establishment. Em suma, tudo quanto poderia aspirar um grande autor para uma pretendida grande obra.

Apesar do aparente formato banal e apelo simplório do livro, Salinger era intelectual refinado e erudito, diferenciado do talento bruto e mesmo fabricado de tantos de seus colegas em língua inglesa. Poliglota e humanista, fluente em francês e em alemão, consumidor voraz de literatura europeia e oriental, viveu plenamente seu tempo, tendo combatido na Segunda Guerra Mundial, o que iria marcar suas futuras opções filosóficas. Depois, dedicou-se à literatura, para em 1951 publicar seu primeiro e definitivo livro-mor, o Apanhador, como comumente citado. No Brasil, o texto recebeu tradução tardia, em 1960, porém das mais felizes, desde o título sem invencionices, como ocorreu nas versões europeias, elaborada com a percepção privilegiada dos então jovens diplomatas Jório Dauster, Álvaro Alencar e An­­tônio Rocha.

Em uma de suas metamorfoses mais intensas, já em idade madura, Salinger adotou o budismo e a vida ascética, ao afastar-se dos holofotes que o distinguiam como a celebridade. Sem entrevistas, sem fotografias, sem conferências, relacionou-se com o mundo apenas pelos livros que continuou a escrever, livros que ficaram sempre ofuscados pela sua obra-prima, nos dois sentidos.

Agora, quando a indústria norte-americana impinge os avatares de um consumismo cultural desolador, apesar do momento sombrio, é sempre oportuno resgatar o humanismo vertiginoso do escritor nova-iorquino. Salinger não precisou de muito para imortalizar-se: bastou um livro e uma personagem, além de talento desmedido, de fazer coalescer sentimentos universais e de fácil compreensão.

Jorge Fontoura é professor titular do Instituto Rio Branco e membro consultor do Conselho Federal da OAB

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