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Nossa Constituição Federal promulgada em 1988 prevê em seu artigo 205 que a educação tem por finalidade o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Sem dúvida, é uma meta bastante ampla que envolve praticamente tudo aquilo que um processo educativo pode proporcionar em todos os seus níveis. Com pequenas alterações, é possível supor que ela deva fazer parte de outras leis relativas aos demais países.
Como pode ser notado, esta finalidade não é unitária porquanto indica três rumos. De acordo com a história o pleno desenvolvimento da pessoa é o mais antigo, pois remonta a Aristóteles, há quatrocentos anos antes de Cristo. Segundo ele, o educando traz dentro de si um conjunto de potencialidades que devem ser atualizadas. De modo intencional ou não, a educação desde a Antiguidade até os dias que correm vem propiciando a amplificação das virtualidades discentes. Note-se que o alcance de tal objetivo tende a favorecer tanto o exercício da cidadania quanto a qualificação para o trabalho. Além disso, ele serve para sustentar o processo de individualização do sujeito como agente e autor de si mesmo.
Já a ideia da qualificação para o trabalho surgiu junto com o nascimento da Era Industrial na Inglaterra em fins do século dezoito, devido a necessidade de os trabalhadores saberem ler, escrever e contar para garantirem o adequado funcionamento das máquinas e das fábricas. Na medida em que a industrialização capitalista avançava, novos conhecimentos e habilidades se tornavam necessários, os quais tinham que ser adquiridos na escola.
Bem mais recente é a meta incidente na formação para a cidadania. Quanto a ela cabe dizer que os estadunidenses talvez tenham sido os primeiros a estabelecê-la na grade curricular em meados do século dezenove e os europeus os segundos, no término do século passado.
No Brasil, nunca atentamos para a formação para a cidadania e a presente Base Nacional Comum Curricular não expõe seu significado e nem aponta os conteúdos e as estratégias para concretizá-la.
Tal meta se encontra intimamente relacionada com a vigência do regime democrático nos Estados Unidos e na Europa. Vale dizer que, na atualidade, a Comunidade Europeia se apresenta como o local onde mais se busca a sua concretização seguida pelos Estados Unidos. Em nosso país, surpreendentemente, emergiu na década de 70 durante a Ditadura Militar. Embora buscada, ela não tem recebido a mesma atenção que vem sendo dada à formação para o trabalho. No Brasil, nunca atentamos para a formação para a cidadania e a presente Base Nacional Comum Curricular não expõe seu significado e nem aponta os conteúdos e as estratégias para concretizá-la.
Parece certo para muitos que a formação para o trabalho seja destacada no âmbito escolar, uma vez que ele é o garantidor da sobrevivência dos indivíduos. Entretanto, é preciso lembrar que o mercado ocupacional se encontra bastante abalado devido a múltiplos fatores. O período contemporâneo, alcunhado por alguns de Pós-modernidade e por outros de Modernidade Tardia, exibe a presença da denominada sociedade do conhecimento onde os saberes são produzidos num ritmo alucinante, e que destroem rapidamente muitas profissões e instalam outras reservadas apenas às pessoas que possuem elevados níveis de engenhosidade.
Reina o modo de produção pós-fordista onde vigora a redução da produção em série e o aumento da diversidade de novos produtos. Em seu bojo encontra-se instaurada a concepção just in time, que é responsável por buscar a precisão da cadeia de produção de acordo com a demanda. Com a atual chegada da tecnologia 5G, o ambiente industrial vai se tornando totalmente robotizado, uma vez que essa tecnologia favorece sobremaneira a orquestração das máquinas e a comunicação entre elas. As mesmas aprendem a se reconfigurar para produzir melhor com um mínimo de interferência humana. Diga-se de passagem, que, segundo pesquisa recente, até 2026 mais de 50% dos empregos formais do nosso país poderão ser ocupados por robôs e programas de computador. A porcentagem representa cerca de 30 milhões de vagas.
O avanço da globalização auxilia sobremaneira o capital especulativo em detrimento das atividades produtivas e fragiliza o Estado como agente de desenvolvimento. Por sua vez, o neoliberalismo decadente, que exige o controle fiscal, torna escasso os recursos estatais para investir em obras geradoras de empregos. Portanto, é perceptível que o trabalho humano se revela como um bem em processo de contínua escassez rumo à uma possível extinção. Logo, a elevada e insistente preocupação em preparar os alunos para o mercado ocupacional é no mínimo questionável e provavelmente insustentável.
No que diz respeito à vida política em muitos recantos do mundo, particularmente em nosso país, nota-se uma série de ocorrências. A globalização tendente a provocar o desmoronamento dos Estados Nacionais, esmorece a garantia de concretização dos direitos outorgados aos cidadãos, pois ela depende da existência e da perenidade de um Estado Nacional forte. O neoliberalismo atua no sentido da eliminação do imaginário social da concepção do Estado provedor bem como busca substituir a figura do cidadão pela figura do consumidor.
O distanciamento dos políticos em relação ao povo é bem visível. Por força do atrelamento às elites, interesses pessoais, corporativismo, personalismo e outras particularidades, torna-se muito difícil a aproximação deles com a população majoritária, a qual, por sua vez, não se sente representada. Acrescente-se que grande parte dos políticos não consegue ostentar uma postura republicana, não diferencia o público do privado, abnega o princípio da publicidade da esfera administrativa. Pior ainda, é carente da virtude cívica, o reconhecimento e a busca do bem comum em detrimento das aspirações particulares. Vale lembrar também as ameaças que rondam o regime democrático em vária partes do mundo, e que, em nosso país, emanam do populismo.
Frente a este contexto desfavorável, assombroso e assaz preocupante, é imprescindível e urgente instaurar a luta pela defesa, fortalecimento e continuidade do genuíno regime democrático e pelo alcance e resguardo de uma vida digna. Esta luta exige a presença de um tipo específico de pessoa, ou seja, de alguém dotado dos sentimentos de indignação e de inconformismo, que rejeita a acomodação, que abriga dentro de si as atitudes de iniciativa, de colaboração e de interesse pelo bem comum. Este tipo de indivíduo, que faz parte de um grupo não majoritário em todos os recantos do mundo é alcunhado como um cidadão ativo.
Ele é uma pessoa que frequentemente se encontra presente no espaço cívico da esfera pública, se considera governante, almeja concretizar ações para influenciar as decisões políticas, iluminar a opinião coletiva, insuflar os programas de governo. Neste espaço costuma participar de marchas de protesto, cobrar decisões das autoridades, realizar trabalhos voluntários, se envolver em campanhas voltadas aos desfavorecidos, organizar jornadas favoráveis aos bens públicos, concretizar atos de boicote a determinados produtos, se envolver em passeatas reivindicatórias e convencer outras pessoas a se tornarem cidadãos ativos. O preparo deste tipo de cidadão deveria ser a meta principal da educação brasileira que insiste em continuar omissa e persevera no envide de esforços à formação do cidadão passivo, ou seja, aquele que prefere conduzir sua vida na clausura de esfera privada.
Antônio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutor em Educação pela USP e autor dos livros Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes).