Enquanto esperava um táxi no aeroporto LaGuardia, em Nova York, dei de cara com um robô policial.
Os nova-iorquinos já devem ter visto a última novidade no combate ao crime. O robô da polícia de Nova York parece o resultado do cruzamento entre o R2-D2 e uma dessas latas de lixo disfarçadas que existem em parques nacionais. Ele passa o tempo todo fazendo um zumbido chato que não vem da operação da máquina – é um som que algum consultor muito bem pago deve ter achado que soa bem tecnológico. O robô tem uma série de utilidades: ele se mete na sua frente, os turistas fazem fotos com ele, e ele contribui com o panóptico que agora vigora em nossos espaços públicos, registrando imagens e sons. É um pouquinho menos útil que o “servidor público” americano médio – o que é um feito bastante negativo.
Quem voar para Nova York terá tempo de contemplar o robocop, porque no LaGuardia o tempo médio de espera por um táxi é uma eternidade. Isso é muito Nova York: há robôs no aeroporto, mas é impossível pegar um Uber ou um Lyft como um cidadão civilizado, enquanto a fila para um táxi vai até o infinito antes de dobrar sobre si mesma.
Chegar a Nova York e circular pela cidade dá uma série de argumentos para um anarcocapitalista. Os aeroportos e companhias aéreas hiper-regulados são um pesadelo de imprudência e hostilidade (com exceção da Swissair, que faz o check-in e o embarque com aquela típica eficiência. O slogan do escritório de turismo da Suíça deveria ser “Tudo funciona. Traga dinheiro”). Na hora do rush à tarde, especialmente se estiver chovendo, os táxis amarelos praticamente somem das ruas de Manhattan graças a uma troca de turno programada para o pior momento possível do dia. Uber e Lyft são muito mais confiáveis nessas situações.
Chegar a Nova York e circular pela cidade dá uma série de argumentos para um anarcocapitalista
Mas aquilo de que você realmente precisa é um “táxi cigano”, ou seja, ilegal (imagino que agora não devamos mais chamar esses táxis de “ciganos”, mas, raios, é o nome deles). Nós passamos por aquela situação em que o normal é tudo dar errado, e precisamos ir de Midtown ao City Hall e de volta ao outro lado de Midtown em um intervalo curtíssimo, e ainda por cima estava caindo um temporal. Não havia táxis para chamar, mas um carro preto, fora de serviço, parou no meio-fio e o motorista fez uma daquelas propostas, com pagamento em dinheiro vivo, que eles fazem de vez em quando. Explicamos a nossa situação. Ele sorriu e pediu um valor até que sensato. Pagamos com gosto, e os deuses da pontualidade foram aplacados com a oferta de umas sete ou oito infrações de trânsito que não são nada em comparação com a selvageria que é a hora do rush em um dia chuvoso em Nova York.
Escrevo esse artigo da Itália, que tem uma reputação (compartilhada com o resto da Europa) de ser ainda mais regulada que os Estados Unidos. Talvez seja mesmo. Mas, se for assim, essa regulação está tão impregnada no tecido social que parece praticamente invisível. Nosso roteiro aqui incluiu dirigir por uma parte considerável do país, e por um pedaço da França também. As duas coisas que realmente impressionam um motorista são: o fato de o entorno das estradas italianas ser bem mais bonito que o das estradas americanas, não apenas naqueles lugares onde a paisagem é de tirar o fôlego, mas até naqueles pedaços comuns de estrada nos arredores de Roma, onde alguma versão italiana de Lady Bird Johnson deve estar cuidando deles; e o fato de vermos tão poucos carros de polícia e semáforos. Dizem que os italianos dirigem como maníacos (e eles às vezes fazem isso mesmo), mas existe uma ordem nisso. Os italianos podem ter tido 63 governos em 65 anos, mas eles sabem para que serve a faixa da esquerda – e, se você não souber, eles vão ajudá-lo a entender.
Quanto mais gente está inclinada a seguir as regras, de menos estruturas para fazer cumprir a lei você precisa. Quanto mais as pessoas sabem o que devem fazer, menos precisamos dizer a elas o que fazer (eu escrevo isso sabendo que há câmeras nas estradas europeias, e provavelmente receberei, pelos próximos seis meses, uma série de multas geradas automaticamente, mas isso é assunto para outro texto). Essa era a teoria cultural básica da América: que nossos antecessores anglo-protestantes estavam tão embrenhados na ética de trabalho protestante, e o tempo todo conscientes de que poderiam ser chamados a encontrar seu Criador a qualquer momento para prestar contas de suas vidas, que eles não precisavam de um reizinho para ficar lhes dizendo o que fazer. Eles guiavam a si mesmos, como gente esclarecida faz. Isso é o liberalismo clássico em uma frase.
Leia também: Um robô vai tomar seu emprego? (artigo de Mateus Azevedo, publicado em 13 de setembro de 2018)
Leia também: Uma política da esperança (artigo de Bernardo Guadalupe, publicado em 21 de junho de 2018)
Eles tinham um conceito de pecado bem mais amplo e rico. Hoje, nós somos obcecados pelo “não farás”, e não prestamos muita atenção ao “farás”. Isso tem consequências infelizes. Como argumentou Megan McArdle, o fato de nossa ética sexual ter sido reduzida quase que exclusivamente à questão do consenso nos privou de um vocabulário ético e moral para descrever – e reclamar de – outros aspectos do sexo que também nos desagradam, como se a coerção fosse o único mal imaginável (e é engraçado ver como nossos amigos “progressistas” variam de forma insana entre o libertarianismo e o stalinismo, dependendo do assunto). Há muito mais na maneira de como tratamos os outros do que simplesmente o “não matarás”.
Nossos ancestrais puritanos não estavam preocupados apenas em aparecer para o julgamento com alguma ofensa na sua ficha corrida (assassinato, adultério, usar poderes satânicos para invocar a forma espectral de Goody Brown e beliscá-la impiedosamente em retaliação ao orgulho indecoroso que tinha pelo seu tricô), mas também com o fato de terem vivido sem ser suficiente prudentes, frugais, trabalhadores ou sóbrios. Eles se preocupavam com o que as suas vidas diziam sobre seu relacionamento com o Criador no aqui e agora, e não só sobre o que lhes aconteceria naquele momento futuro do julgamento que definiria sua eternidade.
A versão caricata do cristianismo (e da maioria das religiões) diz que os religiosos são como crianças medrosas que se arrepiam, se encolhem e se esgueiram para não provocar a ira daquela figura paterna mágica no céu – que está sempre olhando, sempre registrando, anotando tudo. Esse tipo de superstição, nos dizem, está superado. “Agora somos responsáveis por nós mesmos, e sabemos separar o certo do errado”, diz o ateu esclarecido. “Não precisamos nenhum pai celestial mágico nos vigiando para andarmos na linha.”
Claro que não! Pra isso temos os robôs.