A Comissão Nacional do Patrimônio e da Arquitetura da França rejeitoua criação de vitrais contemporâneos na Notre-Dame de Paris. A proposta de autoridades eclesiais e civis queria eliminar os antigos vitrais, que mesmo o incêndio se recusou a destruir, para impor algo mais atual. Isso mostra que o fogo não é tão nocivo a um monumento histórico quanto a insensibilidade cultural.
Por entendimento unânime na semana, o comitê decidiu recusar o projeto de inovação nas janelas da catedral invocando os princípios da conservação contidos na Carta de Veneza, de 1964. Esse texto aponta diretrizes para o restauro de monumentos, o que implica salvaguardar a obra de arte com as suas respectivas evidências históricas. A carta considera que um monumento é inseparável de sua história, da qual ele próprio é um testemunho, por isso, a remoção do todo ou uma parte não deve ser permitida, a menos que seja uma exigência para a conservação ou razões de grande interesse nacional ou internacional. Porém, quais seriam as motivações para destituir um conjunto dos antigos vitrais da catedral gótica, testemunhas heroicas, que sobreviveram àquele inferno de 15 de abril de 2019?
Por sorte dos que ainda virão depois de nós, existem aqueles que resistem aos apelos de tudo nivelar pela medida duvidosa da estética da contemporaneidade
Não poucas vezes, inventores desejam inserir suas marcas em edifícios antigos. Aquela mesma ânsia de um adolescente por ostentar com spray de tinta sua assinatura num lugar evidente, ateliês também possuem, embora não seja um pecado confessado. Nesses anos de trabalhos meticulosos para sua recuperação, as disputas foram acirradas para ganhar algum espaço de publicidade dentro da Catedral de Paris a ponto de estilistas de vasos sanitários terem feitos concepções de pia batismal. Assim, sem um preparo teórico conveniente, viu-se uma corrida de agentes de projetos decorativos desejosos por inserir suas propostas num edifício sacro de oitocentos anos como se teólogos fossem, ainda que logo denunciados pelas suas próprias tendências pouco reverentes e de caráter mais profano do que religioso.
Notre-Dame depois da depredação da Revolução Francesa estava ameaçada de demolição. Foi o romance de Victor Hugo que acendeu os apelos para que fosse recuperada. No século XIX, Viollet-le-Duc, arquiteto que conduziu as obras de restauração, desenvolveu uma consciência de respeito pelo monumento: a intervenção não deve destituí-lo de sua identidade, mas aprimorar sua singularidade, acatando sua índole. Entretanto, hoje, alegando o critério de distinguibilidade, os que desejam impor suas marcas conseguem permissão para interferências contrastantes e chamam “falso histórico” a fidelidade ao estilo construtivo que é a alma de um monumento.
No restauro da Catedral de Curitiba, em 1975, o altar de Nossa Senhora da Luz foi totalmente demolido. Era o projeto de aggiornamento da liturgia nas linhas do Concílio Vaticano II. Foi reerguido graças aos protestos de fiéis que inclusive recolheram o mármore de Carrara que havia sido atirado na caçamba. Desse modo, com a supressão dos altares, das esculturas, e, agora, até dos vitrais, vai-se esvaziando o patrimônio através do oportunismo encontrado por ocasião das obras de restauro, justamente o momento que deveria garantir sua conservação.
Por sorte dos que ainda virão depois de nós, existem aqueles que resistem aos apelos de tudo nivelar pela medida duvidosa da estética da contemporaneidade. Não há propósito justo de aniquilar a memória que se mantém no antigo. O fogo, por vezes, consegue ter mais piedade pelo patrimônio histórico do que a ansiedade de modernização. Aliás, a própria palavra modernizar já se tornou inadequada para se referir à atualização. Só o que é eterno consegue ser sempre atual.
Khae Lhucas Ferreira Pereira é doutorando em Filosofia na Universidade de Sorbonne, em Paris, e especialista em Arquitetura e Conservação.
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