Em 4 de setembro de 2022, os chilenos vão às ruas para decidir em um plebiscito nacional se a nova Carta Magna do país será aprovada ou não. Enquanto o Chile se prepara para reescrever sua história, o texto da Constituição – apresentado ao recém-empossado presidente Gabriel Boric no dia 4 de julho – revela doses de otimismo e preocupações.
O projeto, resultado de um ciclo de mobilizações e demandas políticas que ganharam força em 2019, transmite mensagens importantes: a insatisfação com a velha política, ancorada nas memórias institucionais da ditadura de Augusto Pinochet, e a necessidade de ampliação de direitos sociais garantidos pelo Estado chileno. Nesse contexto, os membros da Assembleia Constituinte optaram pela elaboração de um novo documento, sem referências ou reproduções da atual Constituição de 1980. “A nova Constituição, se aprovada, será a casa de todos, o que não quer dizer que seja do gosto ou mesmo da aprovação de todos”, explica Agustín Squella, membro da Assembleia Constituinte, em entrevista ao jornal El Pais.
Existem expectativas de que as disposições da nova Constituição fomentem a reorganização política, socioeconômica e ambiental do Chile. Por exemplo, o texto prevê um papel mais forte do governo na prestação de serviços sociais (educação, saúde pública, moradia, previdência e força de trabalho), a descentralização de poder, a extinção do Senado e a garantia do direito humano à água. O projeto também propõe o estabelecimento de uma “democracia inclusiva e paritária”, o reconhecimento do “Estado plurinacional, intercultural, regional e ecológico” e a responsabilidade do Estado na mitigação dos efeitos das mudanças climáticas.
Uma questão sensível, entretanto, é a falta de clareza do conteúdo sobre as disposições que elenca, suscitando dúvidas sobre como o país assumirá os compromissos expostos no documento. Com 388 artigos, a nova Constituição é considerada longa e complexa. Especificamente no caso do setor de mineração, não está explícito se a permissão para o exercício da atividade continuará dependente da concessão do sistema judicial, tal como ocorre atualmente, ou se órgãos serão criados para essa finalidade. Tampouco está claro como o sistema judicial chileno tratará de questões jurídicas e fundiárias para os povos indígenas e de que maneira concederá autonomia a diferentes regiões geográficas do país. O ex-presidente chileno, Ricardo Lagos, chama a atenção para o fato de que o Chile merece uma constituição que suscite consenso e, até o momento, não existem condições de alcançá-la.
Não há dúvidas de que, se aprovada, a nova Constituição chilena será uma das mais “progressistas” do mundo. Contudo, pesquisas recentes indicam que 51% dos eleitores rejeitariam a proposta e apenas 33% votariam pela aprovação. O principal desafio do Chile, nesse sentido, parece ser o de conciliar teorias e práticas efetivas, extremos por vezes distantes, mas que precisam ser costurados em prol da continuidade do debate político.
Em meio a discussões sobre as características centrais da reforma constitucional e conflitos de opiniões sobre sua viabilidade, também é importante refletir sobre o caso chileno à luz de outros processos na América Latina. Se o resultado do plebiscito for o de aprovação, o Chile será o último país a mudar sua constituição na América do Sul, libertando-se das amarras que ainda o prendem ao legado ditatorial de Pinochet.
Além disso, o processo de revisão constitucional se distancia de tentativas de expansão de poderes do Executivo e ampliação de mandato presidencial, como ocorreu nos casos de vizinhos fronteiriços (Argentina de Carlos Menem, Peru de Alberto Fujimori e Bolívia de Evo Morales). Na via contrária, o Chile passa por um momento de reformulação do pacto social, em que os cidadãos foram instados a rever as bases sob as quais repousam a ordem social. O caso chileno, portanto, pode ser um exemplo sobre como caminhar em direção à qualidade democrática sem transgredir as regras do jogo político.
Outro ponto importante do texto constitucional é a declaração de que América Latina e Caribe serão tratadas como zonas prioritárias para as relações internacionais chilenas. Seguindo a tendência de outras constituições latino-americanas (Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela), o Chile se compromete com a integração regional, política, social, cultural e econômica. No atual cenário de incertezas políticas e econômicas da região, a retomada de uma agenda de integração e o compromisso com o aprofundamento das relações entre os países se torna fundamental.
Portanto, a decisão dos chilenos, de aprovação ou rejeição da nova Constituição do Chile, merece especial atenção. O resultado do plebiscito é incerto e certamente não significará o fim das discussões. Pelo contrário, espera-se que seja o pontapé inicial para se pensar nas próximas fases necessárias, seja para tornar o projeto realmente passível de ser implementado ou para se pensar em vias alternativas para finalmente substituir a Constituição de 1980.
Tamya Rebelo, doutora em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP), foi pesquisadora no centro Carr Center for Human Rights Policy, centro de estudos da Harvard Kennedy School. É professora de Relações Internacionais da ESPM.
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