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Deltan Dallagnol (Podemos-PR), ex-chefe da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba.
Deltan Dallagnol (Podemos-PR), ex-chefe da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba.| Foto: Arquivo / Gazeta do Povo

O voto do ministro Benedito Gonçalves para deferir, como relator, o pedido de declaração de inelegibilidade de Deltan Dallagnol espelha a mesma superficialidade lúdica de sua decisão impedindo Bolsonaro de usar nas eleições as imagens arrasadoras do sete de setembro, com uma multidão jamais vista na história do país.

Naquela ocasião, Benedito afirmou que Bolsonaro se valia das imagens na condição de chefe de Estado em posição privilegiada relativamente aos demais candidatos, baseando sua decisão no art. 73, I, da lei 9504/97, no qual está capitulada a vedação a “ceder ou usar, em benefício de candidato, partido político ou coligação, bens móveis ou imóveis pertencentes à administração direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios”.

Benedito espelha, assim, a balbúrdia instaurada no Direito a partir do momento em que a lógica foi sendo deflacionada

Veja-se a completa ausência de silogismo judiciário, isto é, de adequação do fato como premissa menor, à lei, como premissa abstrata maior. A via pública, como bem público de uso comum, não fora cedida ao Presidente. Qualquer um poderia transitar por ela.  Benedito erigiu uma concepção adulterina tamanha era a elasticidade empregada, conotando como como cessão de bens imóveis o uso da praça pública para a manifestação política, contrariando o direito regrado no inciso XVI do artigo 5º da Constituição, que só pode ser mitigado pelas posturas municipais.

Somente haveria privilégio do chefe de Estado se fosse impedida igual manifestação com realização de comícios por qualquer outro cidadão. As imagens com maior expressão foram de comícios pagos pela iniciativa privada e não aquelas dos eventos oficiais. Benedito costurou a ideia de que o então presidente se aproveitara do 7 de setembro, como se antes de Bolsonaro a comemoração da independência fosse algo que arrastasse multidões. Como prova do contrário, veremos a apatia de volta às paradas militares nas comemorações da independência a partir deste ano, sob o comando de Lula e do general Tomás.

Veja-se a completa ausência de silogismo judiciário, isto é, de adequação do fato como premissa menor, à lei, como premissa abstrata maior.

Ora, o 7 de setembro se engrandeceu pela consciência patriótica trazida por Bolsonaro, de modo que fora a data que se aproveitara dele e não o contrário. O fingimento diversionista contido na decisão de Benedito pode ser tomado como um marco na história da tergiversação hermenêutica. O fato mostra, também, que Benedito não sabe diferenciar atos de governo (dentro dos quais está o ato político) de atos de gestão.

A administração diferencia-se do ato político e do ato de governo por ser ela a manutenção da estrutura de funcionamento do Estado e viabilização executiva de serviços. Já o ato político integra os chamados atos de governo voltados a dar uma direção tanto interna quanto externa segundo a perspectiva da ideologia do governante. É uma incompreensão infantil pensar em chefe de Estado sem contornos ideológicos, como se fosse ele um zumbi administrativo.

O governante é um político que se elegeu para consolidar os objetivos da República segundo uma linha ideológica por ele abraçada. Fosse para se ater à platitude do funcionarismo não seria necessária eleição, mas simples concurso público. Logo, desentendendo a impossibilidade de divórcio entre o chefe de Estado e o agente político, simbioticamente amalgamados na figura do governante, Benedito equacionou a conduta deste dentro do artigo de lei acima citado, como resultado de seu esforço intelectual de resultado precário para balizar o caso num legalismo tacanho por reducionismo e deformação.

Com Dallagnol, vemos coisa similar. O fundamento legal para a cassação do mandato do deputado foi o art. 1º, inciso I, alínea “q” da Lei Complementar 64, determinando a inelegibilidade de membros do Ministério Público “que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos;"

Quando Dallagnol pediu exoneração não havia PADs, mas simples procedimentos preparatórios prévios à instauração dele. Meros pedidos

Atente-se bem para este elemento objetivo capitulado no artigo de lei como uma das condições que subordinam a hipótese de inelegibilidade para os membros do Ministério Público: a pendência de processo administrativo disciplinar (PAD). Trata-se do que se denomina como numerus clausus, ou seja, não comporta ampliação pelo intérprete, é apenas aquela específica condição, sem a qual não pode existir a inelegibilidade.

Quando Dallagnol pediu exoneração não havia PADs, mas simples procedimentos preparatórios prévios à instauração dele. Meros pedidos. Já podemos imaginar a sanha de ninharias capciosas, quando não idiotices, despejadas vingativamente sobre o homem que colocou a ferros os antes intocáveis avatares da corrupção nacional. Por óbvio, uma quantidade imensa das mais estapafúrdias denúncias foram tentadas, e a sua tão só existência não poderia ser causa de impugnação da candidatura, sem que por elas se houvesse cumprido o requisito legal: a instauração de processo administrativo.

Já podemos imaginar a sanha de ninharias capciosas despejadas vingativamente sobre o homem que colocou a ferros os avatares da corrupção nacional.

Benedito cita em apoio de sua decisão jurisprudência desencontradas. O primeiro caso citado foi o de um desembargador que tentara driblar a vedação à reeleição para a presidência do tribunal onde já tinha sido presidente por dois biênios, renunciando ao cargo 5 dias antes de se completar o segundo biênio; no segundo caso, fora mantida na urna eletrônica a fotografia de um candidato substituído, induzindo o eleitor a votar nele sem se dar conta de que o voto iria para o substituto. Nestes dois casos, toda a ação imputável ou elemento proibitivo estavam já completados no tempo e no espaço, contrariamente ao que sucedeu com Dallagnol, que sequer tinha contra si processos administrativos disciplinares.

Veja-se que Benedito sequer fez uma análise de probabilidade, o que já seria uma aberração, porque ninguém pode ser condenado por probabilidades, salvo nos chamados "crimes de perigo", nos quais se expõe alguém a risco de lesão (crimes de perigo concreto) ou se presume pela lei a existência tal risco pela simples conduta (crimes de perigo abstrato). Usando o mesmo critério do ministro Benedito, se ele, Benedito, fosse acusado de crime grave, por mais que fosse caluniosa a acusação, deveria ter o seu exercício da magistratura suspenso ou até mesmo cassado pela tão só possibilidade que in abstrato qualquer processo tem de resultar numa condenação.

Benedito espelha, assim, a balbúrdia instaurada no Direito a partir do momento em que a lógica foi sendo deflacionada em cada caso concreto, mediante a interpretação justificada com valores e princípios a posteriori da lei, de forma que da silogística passou-se a uma qualquer coisa que saia da cabeça do juiz. O método, se é que essa bagunça judicante tem algum método e não apenas um propósito prévio enrustido para o qual se adapta a interpretação e aplicação do texto legal, tem origem, desde o século XVI, no conflito entre o direito romano e os germanistas, o que tomou forte incremento pelo nazismo. O Programa do Partido nazista de 1920, em seu art. 19, tomava por diretiva a "eliminação do direito romano que serve a uma ordenação materialista do mundo".

É oportuno salientar que a revolta contra a lógica fez vítimas não só no Direito, mas também na filosofia, como foi o caso do assassinato do famoso filósofo analítico Moritz  Schlick por um estudante que o acusara de “judaizar” a filosofia com a lógica. Recorde-se que Kelsen, judeu, inspirador do constitucionalismo moderno, e representante do positivismo lógico no direito, teve forte embate na era pré-nazista com Carl Schmitt, que lhe opunha a guarda da Constituição segundo instanciações metafísicas alcançadas pelo líder da nação (não que neguemos o caráter inestimável das raízes metafísico-religiosas do Ocidente, mas isto não significa louvar seu aproveitamento espúrio pelo nazi-fascismo).

Este registro é curioso para entendermos que, ao contrário do que a incultura generalizada alardeia ao aparentar Bolsonaro com nazismo e fascismo, a atividade judicante que contra ele se operou é o que pode ser associado a esta origem irracional pela qual a subjetividade do juiz serve de trampolim para o desmonte da lei. Algo bem próximo da revolta contra a legalidade promovida pela esquerda nas universidades ao conceituar a lei como emanação da classe dominante. Nas ditaduras, a lei é sempre a primeira vítima.

Felix Soibelman é advogado, articulista e atualizador da Enciclopédia Jurídica Soibelman. Gerou a súmula vinculante 57 no STF, que reconheceu a imunidade tributária das publicações eletrônicas.

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