Imagine-se a seguinte situação hipotética: um presidente da Câmara dos Deputados, homem sagaz e de ótimas relações no tabuleiro congressual, acaba por se ver envolvido em uma série de inquéritos penais com acusações gravíssimas. À luz do princípio da ampla defesa e da presunção de inocência, o acusado tem o direito de defender-se sem qualquer tipo de prejulgamento. Acontece que, por força dos múltiplos poderes da alta função, o investigado começa a prejudicar o bom trabalho da apuração criminal, criando embaraços processuais e dificultando a efetiva continuidade do feito. Nesse contexto defectivo, poderia o Judiciário afastar um presidente de Câmara legislativa?
Sim, a questão, além de inusitada, é absolutamente sui generis. Até mesmo porque só uma nação muito doente precisará de uma ordem judicial de tamanha envergadura. Aliás, se os tempos fossem saudáveis e os hábitos mais elevados, a própria Casa legislativa afastaria, por vontade própria, aquele que não mais possuísse condições de exercer com dignidade a honrosa presidência parlamentar. Mas, infelizmente, no Brasil de hoje, parece que tudo pode, mesmo que tal tudo seja um nada moral. Todavia, a crueza da realidade jamais nos pode afastar do dever do pensamento crítico e reflexivo.
Por tudo, o Supremo foi bem, mas poderia ter sido melhor
Objetivamente, na República, ninguém está acima da lei. No entanto, em matérias de necessária e grave correlação institucional, há necessários temperamentos jurídicos. Inicialmente, a Constituição diz que os poderes republicanos são independentes, mas harmônicos entre si. E só existe harmonia quando há respeito às prerrogativas de cada poder soberano. No caso, seguindo as diretrizes traçadas no art. 53, caput e parágrafos, da CF/88, o conjunto normativo faz crer que eventual decisão judicial de afastamento parlamentar deve ser referendada pela maioria da respectiva Casa legislativa.
Aliás, com a Emenda Constitucional nº 35/2001, houve substancial alteração do regime jurídico das imunidades parlamentares, revogando-se a exigência de licença prévia da Câmara respectiva para a instauração de processos criminais contra Deputados ou Senadores. No entanto, o parágrafo 3º do art. 53/CF, além de determinar à colenda Suprema Corte o dever de comunicar o recebimento da denúncia à Casa Parlamentar competente, veio a estabelecer um poder de sustação da ação penal, a ser potencialmente exercido “por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria dos seus membros”, até a decisão final.
Ressalta-se, por oportuno, que tal poder de sustação processual como prerrogativa parlamentar soberana, já foi analisada pelo STF pela ilustre lente do eminente Min. Sepúlveda Pertence, quando do julgamento do Inquérito nº 1566-1/Acre (DJ 22.03.2002). Naturalmente, a referida regra constitucional possuía, em sua gênese, uma natureza essencialmente plástica, pois o legislador constituinte – nem nos seus piores pesadelos – chegou a pensar que a atividade política seria criminalizada como coisa fútil e banal. Todavia, se a realidade faz a vida, a lei não escolhe o dia para nascer. E, uma vez neste mundo, a legalidade respira para viver firme, forte e eficaz, aplicando-se a todos sem distinções ou honrarias.
Foi, então, que a ficção virou realidade e a colenda Suprema Corte, à unanimidade, veio a suspender e afastar o presidente Eduardo Cunha de suas funções parlamentares. A decisão, além de extraordinária, envolve o complexo tema do controle jurisdicional sobre órgãos políticos constituídos. A matéria é densa, exigindo cautela redobrada. Antes de uma querela pessoal, o que está em jogo é uma relação de poderes republicanos, na qual não há prevalência ou sobreposição imperial. Logo, o triste e deprimente fato exigiria uma justa equação conjugada.
Em clássica lição constitucional, a sabedoria superior de Ruy bem afirmou que a “regra foi sempre, em matéria de privilégios parlamentares a de que cada uma das Câmeras componentes do Poder Legislativo tem em si mesmo a magistratura de sua dignidade e a proteção de seus direitos”. A apontada prerrogativa, frisa-se, não é do político, mas da instituição parlamentar. Em outras palavras, o Parlamente deve ser responsável por si mesmo, não podendo delegar a outros poderes atributos que são seus.
Assim sendo, na tarefa de bem aplicar a lei, o Supremo não pode afastar o Parlamento de suas indissociáveis responsabilidades institucionais. Portanto, era, é e sempre será função do Congresso votar ou ratificar o afastamento dos seus membros. Frisa-se que não se trata de um direito político, mas de uma prerrogativa do poder legislativo. Sobre o ponto, a sabedoria luminosa do saudoso Professor Camillo Martins Costa bem apontou que as prerrogativas do Congresso são “instituídas precisamente para que este possa existir como poder independente”.
Por tudo, o Supremo foi bem, mas poderia ter sido melhor.
Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr é advogado
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