Já há muito no Brasil cresce o sentimento de que a Justiça não traduz os interesses dos brasileiros. A sensação constante de que damos sempre um passo à frente e dois para trás deixa-nos desanimados de investir em propostas virtuosas e propensos aos retrocessos. Mas sabemos que não são naturais e imutáveis as instituições e que nossos impasses com entidades jurídicas e seus agentes têm uma história. Em algum momento, fizemos a escolha de como estruturá-las e ponderamos suas consequências. Um olhar pelo retrovisor pode nos ajudar a entender como se formou nossa jurisprudência, que princípios a embasaram e que opções temos à frente.
Ulysses Guimarães, então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, em seu célebre discurso quando da promulgação da nova Constituição, em outubro de 1988, descreveu eloquentemente as mudanças que decorreriam no país em direção ao igualitarismo social. Na ocasião, Ulysses advertiu que, com a mudança constitucional e o abandono dos “dispositivos militares”, as definições dos poderes da República seriam alteradas. Ao lado do parlamentar constituinte e do presidente José Sarney, também jurou “manter, defender e cumprir” a recente Lei Maior o magistrado Rafael Mayer, o qual fora indicado como ministro do Supremo Tribunal Federal pelo general Ernesto Geisel e eleito como presidente da corte alguns anos depois. Nessa nova definição, o Supremo Tribunal Federal, representado na pessoa de Mayer, ganharia maiores atribuições, iniciando uma nova forma de aplicar a justiça no Brasil.
Cumprindo as prescrições negociadas durante a redemocratização, coube aos magistrados alargarem os limites de suas funções, sendo-lhes imputado o dever de garantir não mais somente as leis, mas também a justiça social. Nota-se a mudança de atribuições quando comparadas as notícias que corriam nos impressos do período. Em 1980, no jornal Folha de S. Paulo, os votos do tribunal – que decidiriam o caso da expulsão do padre italiano Vito Miracapillo – foram descritos em tom de crítica, como “estritamente jurídicos”, dado que os ministros apenas liam e entendiam a lei em vigor “sem discuti-la”. Já em 1992, o ministro da corte Sydney Sanches, alegava, n’O Estado de S.Paulo, que o plenário do STF deveria ir além da simples garantia constitucional e não poderia mais “deixar de considerar o momento político e econômico” do país para proclamar suas decisões. Nesse ínterim ficou determinado que o todos os pleitos poderiam ser julgados e revisados na suprema corte, pois novo escopo de atuação priorizava mais os entendimentos momentâneos dos juízes do que uma jurisprudência perdurável.
Entretanto, as mudanças negociadas entre Guimarães e Mayer, que passaram a valer após a Constituição de 88, não foram pontos pacíficos entre os membros ilustrados da magistratura e do governo. Preocupado com as propostas de transformação do STF e a sua submissão a um possível parlamentarismo – ideia corrente desde 1985 na voz do Dr. Ulysses –, o ministro e ex-presidente da corte João Baptista Cordeiro Guerra alertava, em 1987, n’O Estado de S.Paulo, que a proposta de Carta Magna pretendia “subordinar o Poder Judiciário ao legislador e a representantes das partes nos feitos”, descritos como “ideologicamente comprometidos”.
Assim também fez outro ministro, Oscar Dias Corrêa, considerado conservador e golpista por defender que o STF deveria se restringir a ser “guardião da propriedade, da liberdade e da segurança”. Noticiado no Jornal da Tarde em 1988 como temeroso da aprovação da Constituição, afirmava que a nova carta tinha um conteúdo contraditório, extenso e confuso na forma. Ademais, afligia o magistrado que, juridicamente, o texto somente iria criar uma tensão social, pois prometia “direitos inexequíveis” e “expectativas impossíveis de serem confirmadas”.
Não bastassem os avisos e análises dos próprios magistrados da suprema corte entre 87 e 88, Roberto Campos, senador à época, articulou inúmeras críticas às novas definições de poderes propostas por Ulysses Guimarães – classificado pelo senador como indiferente à economia e atraído pelas utopias. Entre as críticas de Campos, que hoje tomaríamos como previsões, no texto A Constituição “promiscuísta”, de julho de 88, estavam aquelas quanto aos efeitos da Carta sobre os poderes da República, dizendo que por meio das novas figuras jurídicas criadas e das normativas sobre a corte, o Poder Judiciário deixaria “de ser o intérprete e executor das normas para ser o ‘feitor’ das normas, confundindo-se a função judiciária e a legislativa”. Assim, enquanto os constituintes enxergavam certa justiça social nas mudanças, Campos entendia que as novas definições dos poderes os corromperiam e tornariam promíscuas suas relações.
A despeito dos debates e das críticas lançadas à nova Constituição e dos alertas sobre o degringolar da Justiça, há 33 anos decidimos como formar nossas instituições, visando mais a justiça social do que o aprimoramento pragmático do direito. Ainda que não nos caiba julgar o passado, os comentários dos críticos do período dão-nos a impressão de que o alvorecer do novo Supremo Tribunal Federal parece ter sido tão turbulento quanto seu percurso na história. Nossas atuais considerações sobre as entidades de Justiça, semelhantes àquelas feitas em passado recente, aspiram garantir a todos que os valores dispersos na sociedade e pactuados na Constituição sejam mantidos. Caso contrário, se novamente ignorarmos as críticas e, por amenizarmos os problemas reais, não encontrarmos caminhos mais objetivos e virtuosos para nossas instituições, continuaremos a depender da subjetividade dos juízes, de seus foros extensos e da seletividade de suas determinações.
Rodolfo Nogueira da Cruz é mestre e doutorando em História, e bolsista da Fapesp.
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