Ao longo de sua obra, Santo Agostinho insistiu na oposição entre dois tipos de amor: o amor Dei (“amor a Deus”) e o amor sui (“amor a si”). Sem o primeiro, dizia o filho de Santa Mônica, o segundo corria o risco de degenerar-se em puro egoísmo. “Ama Aquele que é maior do que tu e amar-te-ás a ti mesmo”, lê-se no sermão agostiniano sobre a Epístola de Tiago.
Há aí uma hierarquização dos amores, manifesta nos dois primeiros e mais importantes mandamentos: do amor a Deus nasce o amor próprio; deste, o amor ao próximo. Por isso, disse Jesus: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22, 37-39). Na ausência do amor próprio temperado pelo amor a Deus, torna-se impossível o amor ao próximo, fundamento da ética social cristã.
Mais de um milênio depois de Santo Agostinho, outro modelo de ética passa ao primeiro plano. Seu pai fundador é Jean-Jacques Rousseau, cuja pena Lord Acton afirmou ter produzido “mais resultados do que Aristóteles, ou Cícero, ou Santo Agostinho, ou Santo Tomás de Aquino, ou qualquer outro homem que jamais viveu”. Frontalmente contrária à primeira, a ética rousseuaniana dispensa o amor a Deus, erguendo-se única e exclusivamente sobre o amor a si. “O amor aos homens derivado do amor a si: eis o princípio da justiça humana”, escreve o pensador genebrino em Emílio. Ao nos identificarmos com outra pessoa, explica, é antes para não sofrermos que desejamos que ela não sofra: “Interesso-me por ela graças ao amor a mim”.
Nossos artistas, intelectuais e jornalistas prafrentex não pensam um segundo sequer no bem-estar das crianças
As implicações da nova ideia evidenciam-se num trecho em que o jovem Emílio é instruído a exercer as virtudes sociais não em relação a indivíduos particulares, mas ao conjunto da humanidade: “Para impedir que a compaixão se degenere em fraqueza, é preciso generalizá-la, estendê-la a todo o gênero humano. Deve-se, portanto, e por amor a nós mesmos, ter compaixão para com a nossa espécie mais do que para com o nosso próximo”.
Vê-se que, ao acusar Rousseau de amar a humanidade e odiar o semelhante, Edmund Burke não estava longe da verdade. A excêntrica ética rousseuaniana era também um tema caro ao nosso Nélson Rodrigues, bem como ao seu estimado Gustavo Corção, que o abordou em A Descoberta do Outro: “É mais fácil querer bem à humanidade em peso do que ao vizinho que ouve o radioteatro. É mais amplo, mais generoso, falar num microfone virado para o porvir, atirando palavras para um bilhão de ouvidos que ainda não nasceram, do que entrar num quarto cheirando a remédio e a suor”.
Do mesmo autor: A escola dos bárbaros (4 de setembro de 2017)
No último mês, tivemos no Brasil a oportunidade de presenciar acontecimentos que ilustram, respectivamente, cada um daqueles dois sistemas éticos tão díspares. Num extremo, a atitude heroica da professora Heley de Abreu Silva Batista, que perdeu a vida na tragédia da escola em Janaúba (MG), lutando com o psicopata incendiário para tentar salvar seus alunos das chamas. A devoção da professora Heley às suas crianças é o melhor exemplo da ideia cristã de amor (agape), que transcende o amor-próprio e se lança à eternidade. No extremo oposto, a intelligentsia progressista tupiniquim usando crianças como cobaias de seus experimentos em reengenharia social. A exposição Queermuseu (cujo projeto era explícito em incluir crianças em idade escolar como seu público-alvo) e o peladão do MAM distorcendo uma obra de Lygia Clark inserem-se num vasto projeto de erotização infantil e politização da sexualidade. Sob a máscara de ideais abstratos como “liberdade artística” e “diversidade sexual e de gênero”, o que se propõe (uns por maquiavelismo, a maioria por autêntica estupidez) é fazer das crianças meros porretes contra uma tal “onda conservadora”.
Não se compreenderá a obsessão contemporânea em oferecer às crianças arte de baixa qualidade, de teor pornográfico ou blasfemo, sem levar em conta a velha utopia totalitária de criação do “homem novo”. Como sintetizou a filósofa Hannah Arendt num brilhante artigo sobre a crise da educação: “Na Europa, a crença de que é necessário começar pelas crianças se se pretende produzir novas condições tem sido monopólio principalmente dos movimentos revolucionários com tendências tirânicas, movimentos esses que, quando chegam ao poder, retiram os filhos aos pais e, muito simplesmente, tratam de os endoutrinar”.
Leia também: Arte, nudez e um debate distorcido (editorial de 10 de outubro de 2017)
É significativo que a autora remonte justamente a Rousseau a origem dessa perniciosa mistura entre pedagogia e política. “Não se deve abandonar às luzes e preconceitos dos pais a educação de seus filhos, pois ela importa ao Estado mais que aos pais”, escreveu o philosophe no verbete sobre economia da famosa Enciclopédia organizada por Diderot e D’Alembert. Com efeito, o “professor da humanidade” (como o chamava Robespierre) foi pioneiro no ataque revolucionário ao pátrio poder, ataque que se tornou sistemático em tiranias de esquerda, como na Rússia de Stalin, e que ainda hoje continua no horizonte de progressistas mundo afora, para quem a família “burguesa” ou “de classe média” é fonte perpétua de reacionarismo e atraso cultural.
Em Os Demônios, de Dostoievski, um revolucionário inclui entre seus companheiros de luta “o professor de colégio que ri com as crianças do Deus delas e do berço delas”. Nossos artistas, intelectuais e jornalistas prafrentex são como esse professor, não como Heley. Ao contrário desta (e da famosa Dona Regina), não pensam um segundo sequer no bem-estar das crianças, tomando-as como meio para avançar a sua causa política. Interessam-se por elas não por amor ao próximo, mas por amor a si.
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