Estávamos sentados em um bar de Kansas City, no Missouri, ambos bebendo uísque com club soda, e o homem que eu conhecera apenas dez dias antes disse que tinha uma pergunta importante a fazer. Como da última vez que anunciara isso fora para indagar qual a minha relação com a batatinha frita, mostrando com a mão os muitos saquinhos da iguaria na minha despensa (a resposta, obviamente, foi: “A batatinha é a minha alma gêmea”), eu não estava esperando nada de muito bombástico.
Olhei para ele, que me encarou firme e soltou: “Quer se casar comigo?”
O que eu senti foi muito estranho: não foi alegria, nem choque, nem medo. Foi calma. E quem me conhece sabe que, para mim, esse é um sentimento bem raro. Bom, primeiro de tudo, tinha de ter certeza de que ele não estava tirando uma com a minha cara.
“A pergunta é hipotética ou prática?”
“Os dois.”
“Então, quero, sim.”
Ter uma vida amorosa plena não deveria ser fator determinante para viver ou morrer
Pedimos outra rodada, marcamos a data para a união no civil para dali a quatro dias e, logo em seguida, começamos a mandar mensagens para os amigos. “O quê? Como assim? Por quê?”, foi a maioria das reações. “Tem certeza?” Ignorei todas.
Bêbados por causa do uísque e de outras coisas, saímos, trôpegos, do bar. Enquanto eu me dirigia à esquina para dar sinal a um táxi, ele correu à loja de conveniência ali ao lado. “Vou só pegar uma coisinha.” Quando voltou, tinha os braços cheios de sacos de batata frita de todos os sabores disponíveis nas prateleiras.
Mas casamento não é uma questão de amor, e sim de política. Durante toda a minha vida adulta defendi a abolição da instituição, já que não passa de uma série de direitos distribuídos desigualmente a homens e mulheres que se descobrem apaixonados ou se enganam achando que encontraram o grande amor. Se o amor romântico é uma recompensa em si mesmo, como todo filme de Hollywood e romance na seção de “ficção feminina” das livrarias nos fazem crer, por que então engrossá-lo com incentivos fiscais, visitação hospitalar, seguro-saúde, auxílio à imigração e o diabo a quatro? Ter uma vida amorosa plena não deveria ser fator determinante para viver ou morrer.
Uma amiga minha, norte-americana, sofre de uma doença crônica, mas teve a sorte grande de se apaixonar por um alemão, ganhando com isso acesso a uma assistência médica pública excelente e um processo de imigração ágil. Longe do sistema de saúde falido dos EUA – e da estrutura ainda mais estropiada do Medicaid, voltado para os pobres e carentes –, minha amiga recuperou a saúde, ganhou mais energia, um salário mais alto graças à maior capacidade de trabalho, e otimismo pela primeira vez em muitos anos.
Nossas convicções: A importância do casamento
Um amigo indiano nosso tirou a sorte grande ao se apaixonar por uma norte-americana, o que lhe deu acesso a um processo de imigração ágil e a um visto de trabalho menos descomplicado, permitindo que mantivesse o cargo em uma instituição que, apesar de investir milhões de dólares ao ano em bolsas e doações, decidiu que patrocinar os vistos para os funcionários estrangeiros não valia o investimento de tempo e dinheiro.
E tem também a mulher do amigo do meu marido – que teve o azar de se apaixonar perdidamente por um colombiano, ele mesmo em uma situação imigratória instável –, que não só ouviu do governo dos EUA que seu pedido de extensão do visto de residência não seria aprovado, mas também foi informada de que teria o prazo de trinta dias para pôr na mala os quatro anos de vida que construíra em Nova York. Ela teve de ir embora sem nenhuma garantia de que conseguiria voltar ou de que os dois encontrariam um lugar onde tivessem condições de trabalhar e viver.
O que acontece com o amor quando a pessoa percebe o quanto aquela relação é politicamente (in)conveniente? De mãos dadas com meu companheiro na sala do juiz de paz do cartório, eu queria lhe dar tudo isso: um futuro estável, a possibilidade de viver e trabalhar onde quisesse, um espaço maior para suas ambições. Entretanto, algo em mim começou a recuar naquele momento. Uma aventura maluca de amor e romance começou a ganhar ares de sedução estratégica.
“Talvez ele tenha medo de que eu seja um mercenário.”
Fico pensando nessa frase, dita por Morris Townsend no filme “Tarde Demais”, baseado em “A Herdeira”, de Henry James. Na história, Catherine Sloper é uma mulher sem charme, nem atrativos. Sua maneira de se vestir pende para o brega e o exagero, e ela tem aquela aparência de uma pessoa a quem disseram que o amor viria a seu encontro – mas quando isso não acontece, em vez de ficar sentada, esperando calmamente esse dia chegar, ela vai de um lugar para o outro, frenética, perguntando a todo homem que encontra: “É você que veio me salvar?”
Um amigo indiano nosso tirou a sorte grande ao se apaixonar por uma norte-americana, o que lhe deu acesso a um processo de imigração ágil
O que ela tem é uma herança considerável, no caso, US$ 30 mil. Morris Townsend não tem carreira, nem inclinação alguma para o trabalho pesado, mas tem um gosto pelas coisas mais refinadas da vida – e, no filme, o rosto de Montgomery Clift. Ele sabe que a impressão é péssima: o pretendente sem dinheiro atrás da herdeira rica. E não se ajuda muito ao antecipar as suspeitas do pai da moça, emitindo-as em voz alta: “Talvez ele tenha medo de que eu seja um mercenário.”
Bom, como não pensar nisso, com a garota desajeitada que ele jura adorar ali, na frente deles? Mas ela não duvida, não há um único momento de hesitação. Aquele é o amor que lhe prometeram, e ela vai se agarrar a ele como o bote salva-vidas que obviamente é, por mais que o pai dela tente separá-los.
James faz duas coisas: a primeira é que permite que as intenções de Morris sejam ambíguas. Ele não é nem vilão, nem santo. Catherine, apesar de todos os defeitos, tem um senso de humor mordaz e um coração generoso. Não é sua culpa se as mulheres em geral não são atraentes graças ao espírito mordaz e à bondade, mas dá ao leitor a chance de amá-la e torcer para que o gosto de Morris em relação às mulheres seja pouco convencional.
Porém, o que James também faz é sugerir que talvez não faça diferença se Morris a ama, contanto que cuide dela. É uma tragédia fazer do amor uma transação? Dizer “até a morte nos separe”, contanto que eu tenha ternos feitos a mão em Paris, xerez importado da Espanha e charutos cubanos? Ou assistência médica para a minha doença crônica? Ou um visto de residência?
Leia também: Casamento e bem comum (artigo de Carlos Adriano Ferraz, publicado em 14 de outubro de 2018)
Nossas convicções: A valorização da mulher
Eu também ganho uns US$ 30 mil por ano, embora a quantia já não seja mais a fortuna que era há um século, quando James escreveu seu livro. E, como acontece com Catherine, eu tenho a graça de um elefante de salto alto, meus joelhos “decorados” com todo tipo de cicatriz e hematoma graças à habilidade de bater em todo lugar, e minha forma de vestir também pendendo mais para o brega e o exagero. Tenho meus predicados, uma inteligência e uma obra respeitável, mas as mulheres na nossa cultura não se fazem desejáveis pelo intelecto ou pela carreira de sucesso – certamente não para os homens consideravelmente mais jovens.
Como tal, meu amante se parece com Morris no charme inato, na beleza das feições e no desejo por algo que eu facilmente poderia lhe dar. Ao contrário de Catherine, tenho consciência dos meus defeitos e de como, na teoria, nossa relação parece completamente improvável. E vejo perfeitamente a dúvida que permeia nosso círculo social, com os meus amigos fazendo piada sobre o nosso “casamento green card” e a confusão no rosto dos amigos dele quando são apresentados a mim.
Se essa fosse uma transação exclusivamente prática, a sangue-frio, para a obtenção tão necessária de um visto, ou se fosse apenas romântica, duas pessoas tão apaixonadas que não se importam com as opiniões e preocupações do mundo, talvez esse casamento fizesse mais sentido para mim. É a mescla de um e outro que me dá nó no estômago e me deixa gelada.
Casar com ele foi um ato político; patrocinar seu visto, uma atitude de devoção. Estamos montando um arquivo para provar que nosso relacionamento é real, e não uma mera transação. O governo dos EUA fornece uma lista de coisas que, segundo seus critérios, provam a legitimidade do nosso amor. Sob o título “propriedade compartilhada”, podemos mostrar um contrato de aluguel no nome dos dois, uma conta conjunta, restituições de renda apresentadas conjuntamente. Já na categoria “presença social”, querem ver fotos tiradas durante as férias, convites para festas no nome dos dois e postagens nas redes sociais que mostrem que somos um casal.
Vejo perfeitamente a dúvida que permeia nosso círculo social, com os meus amigos fazendo piada sobre o nosso “casamento green card”
Nosso advogado nos deu uma lista de perguntas padrão, para que nos preparássemos para a entrevista inevitável com o burocrata que vai declarar oficialmente se nosso amor é real ou não. “Qual a cor da escova de dentes do seu companheiro?”; “Qual é a comida favorita da sua companheira?”; “Quais são os nomes dos tios e primos de seu parceiro?”
Montar esse arquivo é desgastante para nós dois. As fotos que tiramos são para nós e para o governo. Quando pergunto: “Como chama sua sobrinha mesmo?”, eu o faço para a entrevista, e não por curiosidade.
Mas o arquivo do governo é diferente do que eu tenho na cabeça. Nenhum funcionário público vai se abalar ao saber como me senti ao descobrir que, durante várias semanas, meu amante tinha fuçado o Twitter atrás do meu nome e curtido todos os elogios feitos à minha escrita – sem me falar nada. Ou a frequência com que ele procura minha mão quando caminhamos na rua. Ou a intensidade de seu beijo quanto o juiz nos declarou marido e mulher.
Uma vez, quando estávamos sentados diante de uma pilha de formulários, repassando detalhes, ele me perguntou: “Você alguma vez pensou que esse casamento fosse um golpe?”
“Sim”, respondo, franca, embora a expressão em seu rosto me tenha feito desejar ter mentido.
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