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Apartheid foi um regime de segregação que vigorou por quase 50 anos na África do Sul e que tinha como ideia a superioridade racial da minoria branca no poder sobre negros, indianos e os “de cor”, nome dado aos mestiços na ocasião. Esse regime privou milhões de pessoas de seus direitos civis e políticos entre os anos de 1948 a 1994. O que chama atenção ao estudar o assunto foi o modus operandi do Partido Nacional Sul-Africano, que para alcançar seu objetivo de eliminar as demais etnias decidiu separá-las geograficamente e desprovê-las propositalmente de assistência.
É difícil acreditar, mas atualmente ocorre um fenômeno parecido no Brasil causado pelo poder público e que tem como consequência uma atrocidade parecida com a que ocorreu na África do Sul. A segregação socioespacial é a periferização de grupos sociais no espaço das cidades, representada pelo afastamento das populações mais pobres dos grandes centros econômicos. Engana-se quem pensa que esse fenômeno acontece de forma natural e que é simplesmente uma característica das cidades, engana-se mais ainda quem crê que esse afastamento não traz malefícios severos às pessoas segregadas.
Não cabe a um grupo de agentes agindo politicamente e sem nenhuma base científica estabelecer padrões de construção para áreas privadas.
Segregação é o ato de segregar, de pôr de lado, de separar, isolar ou apartar. Segregação é o processo de dissociação mediante o qual indivíduos e grupos perdem o contato físico e social com outros indivíduos e grupos. Essa separação ou distância social e física é oriunda de fatores biológicos e sociais, como raça, riqueza, educação, religião, profissão, nacionalidade etc. Um estudo do Fórum Econômico Mundial colocou o Brasil na 60ª posição de 82 países em um ranking que mede o índice de mobilidade social, ou seja, o quanto uma pessoa que nasce em uma determinada condição socioeconômica têm chances de melhorar essa posição ao longo da vida. No mesmo estudo consta que o brasileiro mais pobre demora em média 9 gerações para alcançar a renda média do país.
Qual a ligação entre a segregação socioespacial brasileira, que manda os mais pobres cada vez mais para as extremidades das cidades e os piores lugares nos índices de mobilidade social do mundo? Começamos pela dificuldade de acesso. Você acha que pessoas que percorrem longas distâncias até o seu trabalho não têm sua produtividade afetada? Segundo o IBGE, os brasileiros residentes em áreas metropolitanas gastam em média 1h20 por dia em seu deslocamento ao trabalho. O que torna a competição entre uma pessoa pobre de periferia e uma pessoa de classe social elevada e bem localizada ainda mais desigual. Outro problema é a inviabilidade econômica para criação de opções na periferia por conta de sua baixa densidade demográfica. O que isso significa na prática?
Ao planejar investimento, empresas fazem estudos de viabilidade econômica, que nada mais são do que cálculos a fim de saber se há demanda suficiente para seu serviço naquele espaço ou não. Nem preciso dizer que quanto menor a densidade demográfica, ou seja, menor o número de pessoas em determinado espaço, menor a chance de haver demanda por um determinado serviço, expelindo investimentos privados nessas áreas. Isso pode parecer pouco prejudicial, mas ao não ter opções perto de sua morada, o residente da periferia precisa se locomover por longas distâncias e com altos custos para suprir suas necessidades básicas, o que o “ajuda” a permanecer no exato lugar onde está do ponto de vista social. Agora o terceiro e talvez mais perverso argumento que trarei aqui diz respeito à falta de investimento público nas periferias. Bom, você sabe que no Brasil a política atrai em sua grande maioria, pessoas que têm como prioridade seus interesses privados e usam da máquina pública para alcançá-los.
Viver em uma cidade densa tem prós e contras como em qualquer outro espaço, e a escolha de lá permanecer ou não deve ser do indivíduo.
Uma frase do economista americano Thomas Sowell que ilustra bem o cenário brasileiro em relação a isso é: “Ninguém entende de verdade a política até compreender que os políticos não estão tentando resolver os nossos problemas. Eles estão tentando resolver seus próprios problemas, dentre os quais ser eleito e reeleito são número 1 e número 2. O que quer que seja o número 3 está muito atrás dos dois primeiros”. E a grande verdade é que, para os políticos que assim agem, não há interesse em prover melhorias nessas áreas das cidades, pois simplesmente “não dá voto”. Investimento em infraestrutura pública e em saneamento básico demandam muito dinheiro e tempo para conclusão, além de gerar um caos enquanto estão sendo feitos. Tempo que para um político é precioso, pois dentro de 4 anos ele precisa se reeleger e dinheiro que geralmente é investido em coisas simples e “visíveis”, para criar uma ilusão na população de que algo está sendo feito e erguer o capital político do político da ocasião.
Quer saber como exatamente o governo ajudou a criar esse problema? Com a criação do Estatuto da Cidade, nome oficial da Lei 10.257 de 10 de julho de 2001, que estabeleceu diretrizes para ampliação do espaço urbano e obrigou cidades com mais de 20 mil habitantes a terem um plano diretor, conjunto de regras que orienta o crescimento e o desenvolvimento urbano do município. Com planos diretores que impossibilitam o aumento da oferta de residências em áreas centrais, criou-se um déficit imobiliário nas grandes cidades, que só pode ser parcialmente preenchido através de novas construções nas extremidades das cidades, tornando os imóveis próximos aos centros econômicos caros e obrigando as pessoas de baixa renda a morar cada vez mais distante.
O grande intuito das cidades é oferecer a seus moradores algum incentivo econômico, seja a facilidade de fazer negócio, a abundância de emprego, a logística, a quantidade de opções.
Esses planos não são ruins por si só, o que os tornam ruins são premissas erradas usadas para o estabelecimento de suas diretrizes e a atuação política dos agentes do executivo responsáveis por sua confecção, que acabam por inverter totalmente a lógica de uma cidade. O plano diretor de Porto Alegre nos fornece diversos exemplos de regras sem nenhuma base sólida por trás. Exemplos são o limite máximo de altura de edifícios de 52m, a taxa de ocupação máxima de um terreno de 90%, distribuição de “regimes de atividades”, onde há especificação de quais tipos de comércio podem haver em quais bairros da cidade, além de diversas outras.
A questão é, como chegaram nesses números? Com base em quê? Quais os exemplos? Fica claro que os critérios usados foram extremamente subjetivos e que os objetivos buscados ao criar esses limites também são subjetivos. Cidades como Nova York cresceram por muito tempo sob a ausência de planos urbanos rígidos e improdutivos como o de Porto Alegre e mesmo assim se desenvolveram de forma ordenada e com o máximo de aproveitamento possível de espaços escassos. E isso lhes gera benefícios até os dias atuais. Em seu livro Livre Para Escolher, o economista Milton Friedman, ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1976 por seu estudo sobre Análise de Consumo, diz algo interessante sobre como devem ser vistas as políticas de um governo: “As políticas econômicas devem ser avaliadas pelos seus resultados e não pelas suas intenções”.
Apesar de as justificativas utilizadas para estabelecer essas diretrizes nos planos diretores parecerem bem-intencionadas, como questões ambientais, por exemplo, não há uma prova empírica de que os números estabelecidos são os corretos para alcançar esses objetivos. Isso por si só deslegitima as limitações impostas às pessoas em relação ao uso de suas propriedades. Infelizmente, a consequência de implementar políticas baseadas em intenções, e não em resultados, são os problemas mencionados nos primeiros parágrafos deste artigo. O grande intuito das cidades é oferecer a seus moradores algum incentivo econômico, seja a facilidade de fazer negócio, a abundância de emprego, a logística, a quantidade de opções, ou qualquer um dos outros milhares de motivos que tornam uma cidade atrativa para quem lá reside.
Um dos principais especialistas em urbanismo do mundo, autor do livro Order Without Design, o francês Alain Bertaud, que foi por 20 anos um dos principais urbanistas do Banco Mundial e que acumula projetos em cidades como Nova York, Cidade do México, Tlemcen na Argélia, Chandigarh na Índia e muitas outras, tem uma visão prática de qual deve ser o parâmetro usado para estabelecer diretrizes de crescimento a uma cidade: “A demanda é que deve nos dizer o tipo de habitação necessária em determinado lugar”. Viver em uma cidade densa tem prós e contras como em qualquer outro espaço, e a escolha de lá permanecer ou não deve ser do indivíduo, respaldado por suas preferências temporais. Não cabe a um grupo de agentes agindo politicamente e sem nenhuma base científica estabelecer padrões de construção para áreas privadas.
Guilherme Dadda, empreendedor, faz parte da equipe do Instituto de Estudos Empresariais e do Fórum da Liberdade e é diretor de Formação do Instituto Atlantos.