Nas celebrações do antigo culto dionisíaco, uma multidão de mulheres incitadas pelo deus Dioniso (ou seja, bêbadas e drogadas, sob forte efeito de álcool e drogas), dilacerava e desmembrava um animal (geralmente um touro) ou até mesmo um homem, vivo, dividindo-o entre si, e o comia cru, carnes e vísceras. Era um rito sangrento, e as autoridades das cidades-Estado gregas se preocupavam com o que poderia acontecer a partir de um evento de tal monta extático, orgiástico, catártico e, em última instância, incontrolável. Preocupavam-se com rebeliões, revoltas, destruição, sublevações. Ninguém sabe até onde poderiam ir instintos tão “livres”, tão abandonados a si próprios. A verdade é que ninguém estaria a salvo de uma multidão como esta, enfurecida e ensandecida.
O teatro grego surgiu, entre outras razões, como uma tentativa de “domesticar” o culto dionisíaco, bem como os mistérios e as festas dionisíacas, visto que eram estranhos à tradição grega. Foi um culto que chegou na Grécia vindo de territórios vizinhos, povos que viviam fora da civilização clássica. No teatro, na tragédia grega, aquilo que no culto dionisíaco era real (a dilaceração ritualística de um homem vivo que logo depois seria comido cru) passa a ser representado, encenado. Foi uma forma de a pólis grega tentar controlar aquilo que na realidade era totalmente fora de controle.
Faço essa referência ao nascimento do teatro grego porque, segundo o antropólogo René Girard, a cultura humana nasce de um assassinato coletivo, o que ele chama de “assassinato fundador”. Segundo Girard, o assassinato fundador cria a cultura porque permite a sobrevivência da comunidade, por meio do “mecanismo do bode expiatório”. Para o antropólogo, o processo de hominização se dá por meio do desejo mimético (eu desejo aquilo que vejo o outro possuir). Se, por um lado, o desejo nos torna humanos, ao nos libertar da programação do instinto, por outro fomenta diversas rivalidades. É o que Girard chama de rivalidade mimética.
Uma comunidade humana é uma fonte contínua de rivalidades miméticas, num processo sempre crescente de tensão que, se não for parado, tende a destruir a comunidade. Segundo Girard, neste momento surge o que ele chama de “mecanismo vitimário”. A origem de todas estas tensões é atribuída a uma vítima, geralmente inocente, e para ela são canalizadas todas as tensões e rivalidades presentes na comunidade. A vítima, nesta canalização, cria a unanimidade de todos contra um, atraindo sobre si todas as tensões e salvando a comunidade, permitindo a sua continuidade.
Para Girard, o que nós conhecemos como mitos são a elaboração a posteriori, na forma de histórias fantásticas, do assassinato original que deu origem àquela cultura. A vítima original, em gratidão pela salvação da comunidade, logo é divinizada como a criadora daquela comunidade. Segundo Girard, o homem não inventou os deuses, divinizou as suas vítimas. Os deuses nada mais são que a divinização de vítimas reais, de assassinatos que realmente aconteceram, no princípio. Os ritos nascem como gestos que “atualizam” aquele assassinato fundador original. Tornam-no presente. Porque a violência de todos contra todos acaba sempre re-acontecendo, graças ao que Girard chama de ciclo mimético: eu desejo aquilo que o outro tem e eu não posso ter.
Daí nascem os roubos, as traições, os homicídios, as vinganças. A violência aplacada pelo sacrifício original logo retorna, ameaçando destruir a comunidade, e a mesma se lembra do que a salvou: a vítima original, a divindade que “criou” aquela comunidade. O assassinato fundador é reencenado e uma nova vítima “encarna” a divindade protetora da comunidade (a vítima original divinizada). Os ritos nascem, portanto, como uma tentativa eficaz, por parte das comunidades, de exorcismo da violência. Tanto é verdade que, após o sacrifício da vítima, irrompiam-se festas e celebrações. Celebrava-se a paz, a reconciliação. O rito precisa ser repetido e o mito atualizado para garantir a paz e a continuidade da comunidade. Segundo René Girard, é deste rito primitivo que nascem a cultura e todas as instituições humanas.
Podemos verificar a mesma dinâmica numa literatura mais próxima (temporalmente) de nós. Na Bíblia, que fixa em texto escrito tradições orais que remontam a séculos anteriores, o nascimento da cultura é apresentado logo após o assassinato original, o assassinato de Abel por Caim (que para René Girard é a personificação de uma tribo inteira, a tribo dos cainitas). A primeira regra, a primeira interdição – ou seja, a primeira instituição –, é ditada por Deus logo após o assassinato de Abel. Justamente a proibição do assassinato surge do assassinato: “o Senhor respondeu-lhe: ‘Não! Mas aquele que matar Caim será punido sete vezes’. Então, o Senhor pôs em Caim um sinal para que, se alguém o encontrasse, não o matasse” (Gn 4,15). Deus impõe ao eventual assassino de Caim a obrigação de oferecer sete vítimas, ou seja, impõe a obrigação de sete assassinatos como “punição” por um assassinato. Essa desproporcionalidade, que pode parecer absurda, cessa a violência contra Caim. Diante da necessidade de matar mais sete, o eventual assassino de Caim se abstém de assassinar.
Com essa chave, podemos compreender, numa leitura girardiana, o assassinato de Jesus Cristo como o evento fundador da cultura ocidental. Não apenas da cultura cristã, que isso fique bem claro, mas de toda a cultura ocidental, de todas as suas instituições, inclusive aquelas que se jactam hoje de serem “laicas”. Assim como o Império Romano nasceu do assassinato de Júlio César, a cultura ocidental nasceu do assassinato de Jesus Cristo, que uniu, a partir do nascimento de comunidades cristãs em todo o território do Império Romano, numa síntese absolutamente original, Jerusalém, Atenas e Roma. A lógica do assassinato como criador da cultura também pode ser observada nos mártires e no martírio cristão, nos quatro primeiros séculos da era cristã. O mártir, mais do que ninguém, reproduz em si mesmo e imita de forma mais perfeita o assassinato e o sacrifício de Jesus Cristo.
Assim como a morte de Jesus foi fecunda, Tertuliano nos lembra que “o sangue dos mártires é semente de novos cristãos”. Na cultura cristã medieval a cruz passa a ser representada iconograficamente como “árvore da vida”. Isso não é coincidência. A cruz de Cristo foi fecunda, geradora, fértil. De modo absolutamente paradoxal, daquilo que outrora era instrumento de morte nasceu uma fonte de vida que perdura até hoje. É o supremo paradoxo da realidade, é vida a partir de uma morte.
Ainda hoje esta cultura ocidental, como fruto do encontro entre Atenas, Roma e Jerusalém, renasce não apenas do assassinato dos mártires, mas de todas as vítimas inocentes, como Jesus e os mártires cristãos. São vítimas igualmente inocentes os indígenas vítimas de genocídio, os africanos que foram escravizados, as vítimas do Holocausto, as vítimas das bombas atômicas, das ditaduras latino-americanas, do comunismo, das guerras, da fome, da pobreza e da miséria; e ainda mártires como Martin Luther King, que lutaram pelos direitos civis nos Estados Unidos. Jesus é, portanto, a vítima expiatória definitiva. Em Jesus, a verdade, ou seja, a inocência da vítima, fica exposta de forma definitiva. Esta verdade, por muito tempo oculta pelo furor da multidão unânime ensandecida, é restabelecida. Assim, Jesus dá dignidade a todas as vítimas, tornando-as dignas de cuidado, de compaixão, de respeito e de empatia, quebrando o eterno ciclo mimético da violência e expondo a falsidade do mecanismo vitimário do bode expiatório.
Os primeiros cristãos entenderam isso. Não por acaso o cristianismo se difundiu primeiramente naqueles que eram considerados os últimos da sociedade. Muitos conceitos que damos hoje como óbvios e autoevidentes não o eram na Antiguidade, como a dignidade e o valor da pessoa humana, bem como a inocência das vítimas. No fundo, é desse olhar sobre a pessoa humana e, em particular, sobre a inocência da vítima que, pouco a pouco, lenta e quase imperceptivelmente, injustiças como a escravidão serão abolidas e os direitos humanos, proclamados. Deste olhar surge uma cultura nova, uma nova civilização.
Dimitri Martins é mestre em Administração e especialista em Gestão Pública.
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