Imagine um aluno universitário que exige a substituição do termo “mestre” por outro qualquer, pois este o remete às lembranças dos tempos de escravidão, e ele, como negro, sente-se ofendido com isso. E imagine que a universidade aceite a troca. Agora imagine, por fim, que isso não se deu numa universidade qualquer, mas sim na prestigiada Yale. Algo assustador que revela o excesso de vitimização que tomou conta da academia, não é mesmo?
Esse e outros casos parecidos, como a troca de nome de um prédio, suscitaram a reflexão que resultou no livro The Assault on American Excellence, de Anthony Kronman. O autor foi reitor da Faculdade de Direito em Yale, considera-se um democrata “progressista”, mas está um tanto apreensivo com os rumos do politicamente correto dentro das universidades. Para ele, esses casos não são incidentes isolados, mas representam expressões de toda uma mentalidade vigente sobre a missão do ensino mais elevado. E pior: capturou a imaginação dos que administram essas instituições.
O principal argumento de Kronman é que podemos defender a igualdade democrática na política, mas preservar o ambiente aristocrático de excelência dentro dos muros universitários. As universidades seriam justamente essas ilhas de excelência, onde a demanda por igualdade, especialmente de resultados, não pode destruir o ideal de uma conversação livre, calcada em argumentos, não sentimentos pessoais.
Além da própria beleza desse conceito do espírito aristocrático e da importância dessa postura para os alunos envolvidos se tornarem pessoas melhores, o autor argumenta que há vantagens para a própria democracia. Ou seja, resguardar uma elite intelectual blindada contra esse anseio igualitário seria algo positivo para a própria democracia, ao reforçar o hábito do pensamento independente.
Talvez seja mesmo tarde demais para salvar a excelência nas universidades num mundo dominado pela idolatria à mediocridade
Kronman usa Tocqueville como fonte de inspiração, lembrando que o pensador francês temia a “tirania da maioria”, e considerava essencial para o bem-estar de longo prazo da democracia a manutenção de espaços com o sentimento aristocrático. O conformismo imposto pela quantidade numérica poderia ser fatal e levar ao despotismo. Como contraponto, as universidades deveriam preservar o amor por aquilo que é brilhante, raro, nobre.
O ataque “democrata” nas universidades arrisca destruir algo precioso: a reverência pela excelência humana, que tem valor intrínseco, e também serve como auxílio para manter mentes independentes, das quais a saúde da democracia depende. O ataque é contra uma comunidade em que a conversação, por mais calorosa que seja, deveria ser devotada à busca pela verdade, um ideal socrático em sua essência. Isso é incompatível com a crença de que os sentimentos individuais devem falar mais alto do que fatos, lógica ou argumentos.
No afã de asfixiar todo e qualquer preconceito, criam-se bizarrices como “espaços seguros”, “códigos de linguagem” e “gatilhos” que produzem “microagressões”. Todos se sentem ofendidos e acham que isso é razão suficiente para impedir o debate de ideias. E um preconceito perdura intacto: o de que vivemos numa era “iluminada” que pode desprezar todo o conhecimento e experiência acumulados pelas gerações passadas, que viviam supostamente aprisionadas na escuridão.
As universidades, por sua natureza, deveriam se opor a tal mentalidade, resistir a essa tentação para preservar um ambiente de respeito aos que nos legaram a civilização. Elas são, nesse sentido, guardiãs do passado. Mas é isso que está sob ataque hoje, segundo Kronman. É preciso fazer tabula rasa do estoque de conhecimento, desprezar os antepassados, julgados por uma lente revisionista ideológica que anula todo o contexto da época. E, principalmente, é necessário destruir qualquer resquício da noção de aristocracia em seu sentido original, ou seja, uma seleção dos melhores. Basta pensar que até George Washington ou Cristóvão Colombo têm sido alvos de ataques furiosos.
A área de humanas deveria ser aquela que mais instiga no aluno essa constante busca pelo aperfeiçoamento individual. Infelizmente, e por ser a área do saber com mais espaço para a subjetividade, foi justamente a mais contaminada pelo igualitarismo. “Eu devo estudar Política e Guerra para que meus filhos tenham a liberdade de estudar Matemática e Filosofia”, escreveu John Adams, o “pai fundador” mais conservador de todos. Adams é outra referência importante no livro, pois tinha consciência da relevância desse espírito aristocrático para preservar a república.
- Universidade: autonomia, liberdade e dever (artigo de Percival Puggina, publicado em 3 de janeiro de 2019)
- O protagonismo da Universidade de Stanford no Vale do Silício (artigo de Jacir Venturi, publicado em 30 de maio de 2018)
- Para que servem as universidades? (artigo de Rodrigo Constantino, publicado em 27 de março de 2019)
Não há ligação causal direta entre conhecimento e virtude, e basta pensar que foi a Alemanha que pariu o nazismo, e que muitos nazistas apreciavam música clássica e arte em geral. Ainda assim, existe uma conexão forte, pois mais conhecimento pode trazer maior humildade, especialmente se num ambiente moral decente, sustentado pela religião. O processo intelectual de aprendizado tende, no “todo”, a encorajar aquelas qualidades afetivas de moderação, decência e justiça em que um caráter virtuoso consiste pelo menos em parte, acreditava Adams.
Com isso em mente, Kronman desafia seus pares em prol da manutenção das ilhas de excelência nas universidades, reconhecendo que o ambiente político em torno enxerga com forte desconfiança qualquer tipo de hierarquia. Ele acredita, porém, que é perfeitamente possível ser um democrata igualitário além dos muros universitários, e um aristocrata dentro deles.
Já Toby Young, em coluna na edição americana da The Spectator, mostra-se menos otimista. Em crítica ao livro de Kronman, Toby diz que vai acompanhar com interesse o que vai acontecer no próximo semestre em Yale com o autor do livro. Se seus colegas esquerdistas se voltarem contra ele com a mesma ferocidade com que atacaram outros “dissidentes”, isso vai sugerir que o otimismo está fora de lugar, que é no mínimo exagerado. Talvez seja mesmo tarde demais para salvar a excelência nas universidades num mundo dominado pela idolatria à mediocridade.
Rodrigo Constantino, economista e jornalista, é presidente do Conselho do Instituto Liberal.
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