Há alguns dias, em 11 de setembro, foi publicado na Gazeta do Povo um artigo discorrendo sobre a avaliação médica para prática de esportes, a qual a partir de agora chamaremos de avaliação pré-participação, ou APP. O artigo faz uma analogia entre esta APP e a imposição feita pelo governo, há alguns anos, da obrigatoriedade em se ter, em todos os carros, um estojo de primeiros socorros, medida que depois de algum tempo se mostrou ineficaz. E a mensagem que é transmitida pelo artigo é a de que a APP é igualmente inútil.
Apesar de haver diversas leis versando sobre a APP, vale lembrar que as sociedades brasileira, europeia e americana de Medicina do Exercício e do Esporte (e também de Cardiologia) são unânimes em dizer que a APP é uma iniciativa importante e recomendável. Portanto, aqui as leis não configuram uma imposição do governo desprovida de embasamento científico. Por mais que existam algumas discussões sobre o formato (que exames devem ser feitos e em quem) e a periodicidade desta avaliação, segundo as entidades citadas acima a APP deve ser estimulada.
É interessante observar como as pessoas dispendem tempo e dinheiro com diversas questões não essenciais. Mas, quando se fala em saber de sua condição de saúde, ninguém tem o tempo e/ou o dinheiro.
Obviamente vivemos em uma sociedade na qual prevalece o livre arbítrio, mas, quando vemos a população se envolvendo com práticas esportivas de moderadas a intensas, devemos alertá-las sobre o chamado "paradoxo do exercício", que diz mais ou menos o seguinte: a prática regular de exercícios é uma das iniciativas mais importantes para trazer uma boa condição de saúde e reduzir a mortalidade, especialmente por causas cardiovasculares. Muitas vezes um portador de uma doença cardiovascular pode não sentir nada. Se essa pessoa (com a doença silenciosa) porventura se submeter a uma atividade intensa, estará sujeita a um risco maior de ter um evento cardiovascular (por exemplo, um enfarte ou uma parada cardíaca) do que se ela ficar em repouso.
Isso não quer dizer que devemos evitar praticar esportes intensos se assim o desejarmos. Mas quer dizer que, se queremos praticar esse tipo de atividade física mais intensa, precisamos saber de nossas condições de saúde, e isso se faz através da APP. Sempre devemos lembrar que nenhum exame, por mais sofisticado que seja; e nenhum médico, por melhor que seja, pode garantir ao seu paciente risco zero de morrer no minuto seguinte. A APP não deve ser vista como uma garantia ou imunidade (vacina) contra um mal súbito, mas sim como algo que reduz o risco de que essas fatalidades ocorram.
Se formos usar uma analogia para entender melhor a ideia, cabe sempre comparar a prática de exercícios a uma viagem de avião. Qual é o risco de o avião sofrer uma queda? Muito baixo, mas não é zero. Como se faz para reduzir ao máximo este risco? Cuidando da manutenção dos aviões, da saúde dos pilotos e tripulações etc. Então, podemos, de fato, jogar fora o inútil estojo de primeiros socorros do carro, mas a APP não é um desses estojos, e sim uma boa forma de manutenção de nossos "aviões". Vamos cuidar bem deles.
Marcelo B. Leitão, cardiologista e especialista em Medicina do Exercício e do Esporte, é diretor da Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte (SBMEE).