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O bem e o mal, a escatologia da moral e a morte da cobiça

A Queda de Adão e Eva retratada no teto da Capela Sistina. (Foto: Reprodução)

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Como estará o mundo da moral “nos últimos dias” (do grego eneskhataishêmerais), fazendo uso das palavras de Paulo, o apóstolo dos gentios? É possível verificar na permeabilidade histórica da linha do tempo um fenômeno antropológico de inegável relevância ética: a inocência moral está sendo, progressivamente, confiscada do mundo da vida humana. Essa constatação pode ser inferida do pensamento esposado pelo autor do livro Emílio, ou Da Educação, de Jean-Jacques Rousseau, quando ele parece ter sugerido uma correlação feita da associação entre o contato humano com a civilização e a perda da inocência dos bons selvagens.

Essa compreensão parece plausível, uma vez que, em seu estado puro (inocência), a consciência humana existia em condições pré-morais e pré-civilizatórias, estando, portanto, privada do conhecimento (participativo) “do bem e do mal”. É provável que essa interpretação tenha se inspirado na doutrina judeu-cristã acerca da origem do peccatum originale. A queda antropológica, como é compreendida nesta tradição interpretativa, representa o princípio de uma decadência tanto da liberdade quanto da inocência humanas. Para ela, o que levou a primeira humanidade ao princípio do declínio moral não foi o advento da civilização enquanto tal. A decadência, segundo ela, teve sua origem no fenômeno da cobiça (epithymia, no grego), considerado, pela tradição judeu-cristã, a variável que causou tanto a degeneração psicomoral da inocência quanto a ambivalência mecânico-funcional da liberdade. A cobiça, que precede o ato de transgressão propriamente, é início da degeneração moral.

A cobiça, na forma negativa (não cobiçarás), sublinha um estado de descontrole da vontade que opera com a euforia de uma economia hedocultural. O ímpeto compulsivo da cobiça alimenta-se da sensação de prazer de um ato transgressivo.

Essa interpretação parece ser sustentável. A narrativa das origens é rica quanto à descrição do processo de formação de uma psicologia da cobiça. Na abordagem, a progressão da racionalidade transgressora está associada ao aumento do poder sedutor do objeto apresentado pela Serpente à Mulher. O evento da queda original é, portanto, precedido pela cobiça que emerge do diálogo sugestionável que acontece entre elas. Neste episódio, um componente psíquico é introduzido para deixar em evidência hermenêutica a etiologia da liberdade disfuncional.

De acordo com essa interpretação, o fruto desejável provocou uma alteração mecânica na psicologia da vontade moral da interlocutora da Serpente (desejo cobiçoso). Sua liberdade perdeu o equilíbrio funcional e se tornou, a partir de então, ambivalente em seu modo de operar. Essa mudança ocorrida produziu na Mulher o efeito disfuncional em sua vontade: ela desenvolveu uma autonomia psicomoral e deixou de considerar, com isso, os riscos escatológicos da escolha instintiva que ela fez impelida pelo desejo de possuir o que lhe era impróprio. O desejo cobiçoso/proibido, desde então, foi associado na antropologia teológica de Paulo ao apetite desregrado da vontade (asotía, no grego).

Por essa razão, ele se tornou sinônimo moral de auto controle disfuncional, ou de uma consciência embriagada pelo prazer enlouquecido que não consegue diferenciar o bem do mal. Foi assim que a tradição sapiencial a decodificou (cobiça), sendo, por isso mesmo, considerada posteriormente um tema relevante nos escritos do apóstolo dos gentios.

A cobiça, na forma negativa (não cobiçarás), sublinha um estado de descontrole da vontade que opera com a euforia de uma economia hedocultural. O ímpeto compulsivo da cobiça alimenta-se da sensação de prazer de um ato transgressivo, propriamente. Nessa engenharia do hedonismo psicológico, o desejo cobiçoso opera tão somente enquanto a polarização da moral é mantida. Isso porque todo ato transgressivo favorece o aumento exponencial da euforia do prazer. Nesse sentido, cobiça e polarização da moral são fenômenos que coexistem e interagem um com o outro. A cobiça é, portanto, uma variável psíquica que sempre identifica “a linha proibitiva” a ser transgredida no âmbito de uma cultura moral de repressão. Cobiçar, deste modo, é obter o prazer pela via contraditória da proibição do acesso a um objeto impróprio. A consciência do veto moral (não cobiçarás), na verdade, é o que paradoxalmente gera maior potencial orgástico aos atos transgressores do Ego.

Por isso mesmo, a mecânica operacional do desejo proibido deve ser compreendida como racionalidade transgressora de efeito prazeroso. Por conhecer o mal, a vontade humana foi condicionada pela cobiça a desejá-lo a ponto de não querer evitá-lo. Isso porque a racionalidade transgressora gerou, na psicologia do Ego, uma cultura de dependência das sensações orgásticas que se pode auferir de cada ação que viola os limites impostos por uma cultura de proibitividade.

Nesse caso, a inocência não deve ser entendida como uma condição que implica o fechar dos olhos para um mundo em que normas e valores definem o arcabouço moral de uma antropologia do limite. Não! Ela (inocência) não pode ser/estar destituída da consciência das fronteiras morais existentes no mundo da vida. No entanto, a inocência coexiste com os riscos sem se deixar ser seduzida pela sugestionabilidade das ofertas orgásticas que o hedonismo psicológico lhe apresenta como um tipo de recompensa para cada ato de transgressão do Ego.

No funcionamento operacional da cobiça, contudo, a sensação do prazer se torna um componente estrutural da psicologia da vontade que mantêm a relação de cumplicidade paradoxal entre experiências orgásticas e consciência do veto. Quando se destitui do comportamento qualquer componente moral de limite capaz de definir o gênero de cada escolha que o Ego faz, a liberdade perde seu fundamento/sustentação moral de operacionalização da vontade, e a inocência deixa de existir como virtude ética numa sociedade sem limites normativos.

Mas, afinal, seria possível inferir o confisco da cobiça em um ambiente cultural de desconstrução de todas as normas morais? Sim! Se pudéssemos realizar a análise sociológica de um contexto religioso, seria plausível definir como escatológico esse fenômeno cultural marcado pelo advento da sociedade pós-tradicional na qual os valores religiosos estão sendo, sistematicamente, removidos. Eventos culturais como a desconstrução de crenças e valores tradicionais, reconstrução não religiosa da vida social, flutuação das identidades e androgenização sistêmica revelam a realidade de uma sociedade marcada pelo fim de uma ordem moral, a derrocada dos vetores padronizadores de uma sociedade de moral repressora.

A sociedade pós-tradicional deve, pois, ser compreendida como um advento de natureza escatológica. Ela inaugura um âmbito de interação no qual se perde por completo o seu vitalismo moral.

Inspirado pela interpretação de Michel Maffesoli, torna-se plausível afirmar que a saturação de uma ordem moral aponta para a irrupção de um novo mundo social. O construto pós-tradicional, desse modo, incorpora a noção de intercambio proposital dos fenômenos acima citados. E um dos acontecimentos mais emblemáticos que ocorreu na epiderme cultural desta sociedade pós-tradicional diz respeito ao crepúsculo de um 'comportamento sócio-moral-padronizante (tradicionalismo). Por pós-tradicional sugere-se o fim do moralismo que impõe um modelo hegemônico de comportamento. Assim, o conceito de evento escatomoral preconiza o fenômeno de desconstrução de uma ordem moral enraizada no solo de uma tradição religiosa.

Este evento da cultura pós-tradicional que acontece no mundo ocidental pressupõe a incidência de uma ação sequenciada de desenraizamento progressivo de crenças e valores fundantes que sustentam a identidade moral de uma organização social como tal. A flutuação ôntica das identidades é outro fenômeno que revela a existência de uma ordem social despadronizada, na qual o comportamento indefinido marca uma tendência cultural generalizante de desfiliação dos valores intransitórios. A androgenização sistêmica também sugere a fusão das diferenças axiológicas que torna improvável a tentativa de se pontuar um princípio de normatização. A androginia, como um evento cultural da sociedade pós-tradicional, indica a criação de um retrato moral indefinido dela e de valores associados.

Com isso, o conceito de pós-tradicional passa a implicar o crepúsculo de uma sociedade que padroniza moralmente o comportamento coletivo. Nela, o fenômeno da despolarização da moral (fenômeno que torna impraticável distinguir o bem do mal) torna improvável a criação de um solo fértil para a sobrevivência da ética religiosa normatizadora. Desse modo, a sociedade pós-tradicional inaugura um novo tempo cultural determinado pela falência cabal da moralidade como sonhou Nietzsche. Trata-se, pois, da construção de um novo mundo que agora parece ser dominado pelo determinismo das sensações. E é nesse novo mundo que a experiência do prazer se torna hipervalorizada, um traço hegemônico do psiquismo social.

A sociedade pós-tradicional deve, pois, ser compreendida como um advento de natureza escatológica. Ela inaugura um âmbito de interação no qual se perde por completo o seu vitalismo moral. E sem ele, toda mecânica psíquica da cobiça se desfuncionaliza plenamente. Com a falência do binômio axiológico bem e mal, a vontade do Ego perde seu ímpeto de loucura hedônica. Sem uma moral definindo padrões aceitáveis do comportamento social coletivo, a cobiça perde sua finalidade de existir por conta da ausência de uma cultura moral de proibição.

Neste caso, o horizonte hedocultural se abre para a triunfo operacional da racionalidade transgressora. A satisfação do prazer se torna o único critério de validação das escolhas instintivas que os indivíduos passam a fazer na sociedade com esse perfil. Por escatomoralismo se quer indicar o advento do crepúsculo das escolhas morais e a possibilidade da irrupção de um tempo social determinado, fundamentalmente, pelo fim da liberdade e a supressão da inocência humana. Nesta conjuntura há a predominância de uma racionalidade transgressora, não existem restrições, mas apenas “objetos desejáveis” a serem consumidos/conquistados. Com o evento do escatomoralismo (o fim da moralidade), o processo de desconstrução progressiva da cultura moral no mundo social implica, inversamente, a reconstrução não religiosa (e, portanto, não moral) da vida social.

O determinismo das sensações se torna, nesta sociedade pós-tradicional e pós-religiosa, a lei e os profetas. Nela se institui a legitimação das escolhas instintivas feitas sem o constrangimento da culpa.

No contexto escatológico desta sociedade pós-tradicional, o ser humano está se tornando uma pessoa sem domínio próprio, amante dos prazeres, e guiado, exclusivamente, pelo instinto aquisitivo de novas sensações que torne possível alcançar o ápice das experiências máximas, típicas de um ideal hedocultural de vida no mundo em que a moral foi abolida. A racionalidade transgressora é um modo descontrolado de operar da psicologia do desejo que desconhece quaisquer limites que impeçam a obtenção de novas experiências orgásticas, experiências próprias de uma dinâmica cultural que sobrevive do princípio do prazer pelo prazer.

O determinismo das sensações se torna, nesta sociedade pós-tradicional e pós-religiosa, a lei e os profetas. Nela se institui a legitimação das escolhas instintivas feitas sem o constrangimento da culpa, e no qual o ímpeto da psicologia da vontade desatinada é movido, única e fundamentalmente, pelo hábito transgressivo circunscrito a uma forma de vida sem fronteiras morais. Nos últimos dias, diz Paulo, o apóstolo dos gentios, o comportamento humano será predominantemente assim, instigado a fazer apenas escolhas instintivas baseadas na sensação do prazer. No fenômeno da despolarização da moral, a fronteira normativa que separa o permitido do proibido se apagou. E sem a proibição, não há o que ser transgredido: tudo pode ser apropriado/desejado. Desta nova condição cultural de vida nesta sociedade pós-moral emerge uma constatação insólita: a morte da cobiça. Sim, quando tudo se torna permitido, então não há mais nada a ser cobiçado.

Anderson Clayton Pires é doutor em Sociologia e em Teologia e Hermenêutica, pastor luterano e professor.

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