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O Brasil na contramão dos princípios norteadores de sua política migratória

Soldado brasileiro fala com venezuelanos perto da fronteira entre Venezuela e Brasil, em Pacaraima, no estado de Roraima, 26 de fevereiro. (Foto: Nelson Almeida/AFP)

Após quase 30 anos de vigência do Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/1980), que estabelecia o princípio da segurança nacional como o norteador para o tratamento dos migrantes no Brasil, a Nova Lei de Migração, que entrou em vigor em 21 de novembro de 2017, revogou-o. A ênfase ao dever de observância ao princípio da dignidade da pessoa humana para nortear o tratamento dos migrantes seria o novo fundamento para a interpretação e aplicação da legislação migratória nacional. A menção clara ao dever de respeitar todos os preceitos dos direitos humanos foi motivo de referenciação positiva internacional.

Aproximadamente um ano depois do avanço humanitário experimentado pelo direito migratório, o cenário no Brasil é novamente convertido ao conservadorismo nessa matéria, relembrando a época em que o Estatuto do Estrangeiro foi promulgado e o princípio que o norteava.

O primeiro ponto que evidencia que o país está caminhando na contramão principiológica foi a retirada do Brasil do Pacto Global para a Migração Segura, Ordenada e Regular, que já estava assinado, como um dos primeiros atos do atual ministro das Relações Exteriores. A justificativa alegada foi o fato de que o instrumento vai de encontro à política migratória brasileira, considerando-o inadequado para tratar da questão migratória, pois, em seu entendimento, esta não seria uma questão global, mas deveria ser analisada de acordo com a realidade e a soberania de cada país.

Com as novas interpretações dadas às normas de direito migratório, o migrante suspeito de ser pessoa perigosa tem prazo inferior de defesa e é presumido culpado

O referido instrumento internacional, entretanto, assinado por mais de 160 países, em especial no parágrafo 15, item c, assegura o respeito ao princípio da soberania dos Estados como instituto fundamental e o respeito à legislação migratória interna de cada um deles.

O Brasil, estatisticamente, tem três vezes mais nacionais residindo fora do país do que migrantes que estabeleceram residência em seu território. Mesmo assim, a alegação de que a migração não é uma questão internacional e sim de segurança nacional prevaleceu para a retirada do Brasil de um pacto internacional que estabelece diretrizes para que o tratamento da migração seja abrangido como uma questão humanitária.

Neste sentido, em 26 de julho de 2019 foi publicada no Diário Oficial da União a Portaria Ministerial 666, do ministro da Justiça e Segurança Pública, dispondo sobre o impedimento de ingresso, a repatriação e a deportação sumária de pessoa perigosa ou que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal. A referida portaria contempla duas novidades legais: a construção do conceito de “pessoa perigosa”, mencionado no artigo 7.º, § 2.º do Estatuto dos Refugiados, e a criação do instituto da deportação sumária, sem previsão legal anterior.

O que chama a atenção é que a portaria define que os migrantes e visitantes que estariam enquadrados nos conceitos de pessoa perigosa ou de pessoa que tenha praticado ato contrário à Constituição afirma que a simples suspeita de terem cometido algum dos crimes elencados no artigo 2.º da portaria seria suficiente para a aplicação das penalidades.

O Decreto 9.199/17, que regulamenta a Lei de Migração, por exemplo, descreve em seu artigo 192 a medida de retirada compulsória mais gravosa prevista na nova legislação migratória, que é o instituto da expulsão do migrante que tenha praticado atos como o genocídio ou crimes de guerra, direcionando a aplicação da medida aos migrantes que tenham sentença condenatória transitada em julgado e, ainda, garantindo o direito do contraditório e ampla defesa, respeitando o prazo de dez dias para interpor recurso administrativo previsto no artigo 59 da Lei dos Processos Administrativos.

O instituto da deportação sumária criado pela Portaria Ministerial 666, que recai também sobre migrante ou visitante que seja meramente suspeito de ter praticado algum dos atos elencados acima, prevê o prazo de 48 horas para que o migrante notificado exerça o seu direito ao contraditório. De acordo com as novas interpretações dadas às normas de direito migratório, o migrante suspeito de ser pessoa perigosa tem prazo inferior de defesa e é presumido culpado, com possibilidade de ter prisão cautelar decretada para assegurar a sua deportação e, inclusive, a motivação que levará à sua deportação pode ser sigilosa, impossibilitando definitivamente o seu direito de defesa. Aqui observa-se a limitação do exercício do direito ao contraditório e ampla defesa, garantido pelo artigo 5.º, LV, da Constituição, e ignora-se o princípio da presunção de inocência (artigo 5.º, LVII, da Constituição), prevalecendo o princípio da segurança nacional como o norteador da interpretação legal.

Posteriormente, no dia 19 de agosto 2019, foi publicada no Diário Oficial da União a Portaria Interministerial 7, prevendo o impedimento de ingresso no Brasil de altos funcionários do regime venezuelano, que, por seus atos, contrariam os princípios e objetivos da Constituição. O rol taxativo com os nomes das pessoas que devem ser impedidas de ingressar no Brasil ainda não foi divulgado.

Por fim, apesar dos pontos mencionados para exemplificar a contramão principiológica em que se encontra a política migratória atual, resta claro que os atos do Executivo mencionados estão visando regulamentar o disposto no artigo 45, IX, da Lei de Migração, que dispõe sobre o impedimento de ingresso de pessoa que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal. Ocorre que a redação dessas medidas do ano de 2019 trazem questionamentos sobre as prioridades principiológicas do governo brasileiro na área migratória. É importante que se tenha em mente que a Constituição Federal, invocada veementemente para a promulgação dos novos regulamentos que compõem a legislação migratória contemporânea, contempla também um rol de direitos fundamentais inerentes ao indivíduo que devem prevalecer.

Gisele Pereira Mendes é advogada especialista em Direito Migratório.

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