O líder do governo da Câmara dos Deputados, Ricardo Barros, soltou, entre tantas as que têm aparecido ultimamente, uma pérola: o Brasil precisa de uma nova Constituição. Esse assunto aparece vez por outra. Falou-se já da necessidade de uma reforma constitucional robusta ou de uma lipoaspiração, de uma Constituinte voltada à reforma política etc. Agora, com o sucesso do plebiscito chileno, o governo de plantão, por meio de sua voz na câmara baixa do Congresso, aproveita o momento para atacar.
A ideia é chamar um plebiscito para autorizar a convocação do poder constituinte originário e inaugurar uma nova ordem constitucional. Diz o deputado que a atual Constituição trouxe “excesso de direitos e escassez de deveres para com a nação”; deixou, repetindo o mantra do presidente Sarney durante o processo constituinte de 1987/88, “o país ingovernável”; e mais, que é necessário “corrigir o excesso de ativismo ou de intervenção do Judiciário”. Vemos aqui, claramente, reproduzida pelo parlamentar a voz do presidente.
Vamos colocar as coisas em perspectiva. Cumpre lembrar, em primeiro lugar, que não há no país um momento constitucional, uma fase de transição ou de acumulação de energias endereçadas à construção de uma nova ordem constitucional democrática e plural como no Chile. Ora, o Chile chega agora ao tempo pelo qual nós passamos em 1987/88. A transição chilena, ao contrário da nossa, não conduziu à promulgação de uma nova Constituição. Os remendos da Constituição autoritária e militarista de Pinochet deixaram de ser funcionais e o país reclama uma outra que possa condensar, num documento democrático, os anseios de liberdade, igualdade e pluralidade da sociedade. Tudo se passa de modo diferente entre nós. Atravessamos um processo de transição a partir de 1985, o país convocou uma constituinte para romper com a ordem autoritária e conquistou, através de um processo amplamente participativo e aberto, a Constituição Federal em vigor, matriz do nosso contrato social. O Chile segue o caminho brasileiro e, portanto, não é o Brasil que deve, agora, seguir o chileno.
A nossa Lei Fundamental é, como todas as obras humanas, fruto de um tempo histórico e carrega muitas características daquele tempo. Tem, certamente, defeitos. Mas é democrática, é plural, não repele novas conquistas civilizatórias – ao contrário, as estimula –, tem vigorado por mais tempo que as demais Constituições republicanas depois da Revolução de 30, superou o trauma de duas iniciativas de impeachment, a segunda delas deixando cicatrizes profundas, e mesmo agora, tem conseguido resistir a uma época de polarização radicalizada, emergência de ideias intolerantes e erosão do compromisso democrático. Sua declaração de direitos e os seus princípios fundantes constituem contribuição seminal ao constitucionalismo ocidental e sua parte orgânica, a que cuida dos poderes impondo freios e contrapesos, pode ser criticada aqui e ali, mas ninguém discordará de que dispõe de instrumentos estimuladores do diálogo ou da superação das naturais ou exacerbadas tensões de natureza política que ocorrem de tempos em tempos.
Mas a grande vantagem da nossa Constituição é o seu desenho institucional. Ela substancia uma ordem normativa aberta em diálogo com a realidade social, apresentando um equilíbrio refinado e funcional entre permanência e impulsos de mudança. Com efeito, o núcleo essencial, as cláusulas pétreas ou intangíveis são definidas com alguma modéstia, podendo as demais disposições constitucionais sofrer mudança por meio de uma maioria qualificada, mas não inalcançável, três quintos dos membros das duas casas do Congresso em dois turnos de votação. Ao contrário da Carta americana, quase impossível de ser emendada – tanto que sofreu, nos seus mais de dois séculos de existência, apenas 27 emendas, assumindo a Suprema Corte um papel essencial na sua necessária atualização –, a nossa pode ser modificada, com exceção das cláusulas pétreas, com relativa facilidade. Esta abertura para o mundo da vida, para os reclamos da sociedade e dos tempos emergentes, com a manutenção do compromisso com a democracia, a república e a dignidade humana, comprova a inteligência da sua conformação, do seu desenho, da sua configuração. Ela já foi modificada mais de 100 vezes e, claro, pode ser alterada outras 100. A sua fortaleza é o que alguns tomam por fragilidade. Ora, este é o processo contínuo de adaptação através da aprovação de emendas. E assim deve ser. O futuro não está bloqueado, os mortos não governarão as novas gerações, a Constituição permite a gestão adequada das expectativas dos que virão depois. Motivo para aplauso e não para críticas.
Não é difícil refutar as afirmações do deputado. Os deveres estão presentes, implícita ou explicitamente, no documento constitucional; o tamanho não é motivo para desconsolo; os direitos fundamentais são o que o nome diz, direitos e não obrigações; os direitos sociais não tornam o país ingovernável, sendo, antes disso, uma das razões para governar; os supostos problemas na relação entre os poderes não carecem da convocação de constituinte para sofrerem correção; e, por fim, os eventuais excessos do Judiciário ou o seu ativismo podem, numa sociedade livre e democrática, ser questionados por meio dos instrumentos processuais, da crítica honesta e dura da imprensa livre e da política consequente.
Não há, portanto, nenhuma razão forte que justifique, neste momento, a manifestação do poder constituinte originário. Não vivemos um processo de transição ou de ruptura com um passado de assombros, os argumentos apresentados são frágeis e a Lei Fundamental pode ser modificada sem maiores dificuldades quando isto se afigurar imperativo. A convocação do plebiscito, este meio de ouvir sem intermediários a vontade popular, tão ao gosto dos governos autoritários, esbarra também em insuperável problema jurídico: é manifestamente inconstitucional. Os meios de consulta direta da população contemplados na Carta, plebiscito e referendo, não se prestam para autorizar o sepultamento da vigente ordem constitucional, mas antes, requerendo prudência, em casos bastante sensíveis, que envolvam direito infraconstitucional, para afirmá-la, dando efetividade aos seus comandos.
Vemos nisso tudo, nas propostas surrealistas que são, com frequência, colocadas na mesa por este governo, um balão de ensaio. Se a proposta pegar, pegou. Não vai pegar! O deputado, ao contrário do que diz, não fala em nome pessoal. Ele é a voz do governo na câmara baixa do Congresso Nacional, e é deste modo que as suas palavras merecem ser ouvidas. O poder testa, verifica a reação e as defesas da sociedade e, encontrando o campo livre, põe em marcha o projeto autoritário e antidemocrático. Esta é a natureza do presidente, que afirma ser, ele próprio, a Constituição, que teria sido eleito para levar adiante, sem a resistência da minoria ou dos demais poderes, o projeto majoritário e vendedor nas urnas, que elogia o regime civil-militar de 64, que namora com os grupos que pedem o fechamento do Legislativo e do Supremo Tribunal Federal e reclama, vez por outra, um novo AI-5.
Tudo aponta para um constitucionalismo abusivo, na linha daquele experimentado pelos conhecidos regimes iliberais da Hungria, da Polônia, da Turquia, das Filipinas ou da Venezuela, onde o presidente manda e os demais obedecem, e tudo nos termos das novas Constituições ou das reformas que introduzem no sistema político elementos iliberais e contrários ao constitucionalismo autêntico. São ensaios que precisam ser combatidos com veemência.
O clamor do Chile é por mais democracia e por uma sociedade de livres e iguais com nova Constituição escrita paritariamente por mulheres e homens que festejam a liberdade. O pretexto, levantado pelo deputado, é, sim, o apelo justificado e festivo do Chile. Mas as práticas e palavras do governo, sobretudo na voz do presidente, apontam para o elevado risco da empreitada e sugerem resultado que pode ser bem previsível. Preservemos a nossa Lei Fundamental. Operemos, como temos feito, pelos meios que ela oferece, as reformas pontuais que a experiência pode exigir, pois, consideradas as virtudes (que são muitas) e apontados os defeitos (quando as emendas são o remédio), importa dizer, reiterando o título do artigo, que o Brasil não precisa de uma nova Constituição.
Clèmerson Merlin Clève é professor titular doutor das faculdades de Direito da UFPR e do UniBrasil Centro Universitário.