Durante a Copa do Mundo, além da competição em si, um tema recorrente emerge no horizonte de nossas preocupações cívicas: por que há mobilização dos brasileiros em torno da seleção, enquanto o mesmo ímpeto coletivo não se repete quando é necessário tratar de assuntos "mais importantes"?
Essa pergunta está ancorada em dois pressupostos questionáveis. Em primeiro lugar, ela sugere que o futebol ou o espetáculo esportivo de um modo geral representa uma espécie de "ópio do povo", uma manifestação moderna do "pão e circo" que distrai e aliena. Em segundo lugar, ela sugere uma visão pessimista dos brasileiros, supostamente inclinados ao desinteresse em relação aos problemas da nação.
O primeiro pressuposto alinha num contexto de causa e efeito o futebol, o entretenimento e a ideia de alienação. Embora datada e amplamente revisada no campo das ciências sociais, esta temática pode ser submetida a um escrutínio muito simples: num mundo que oferece variadas "válvulas de escape" para a rotina do cotidiano, das drogas às tecnologias de comunicação instantânea, seria a lógica do entretenimento algo peculiar ao futebol ou, de forma inversa, seria o futebol um fenômeno restrito à lógica do entretenimento?
Um dado histórico é importante para iluminar essa relação. Antes de o espaço geográfico brasileiro ter sido integrado por um sistema de comunicação de massa, já estava difundida e consolidada a ideia de que, através do futebol, é possível entrever a essência da nação. Na década de 1940, por exemplo, Gilberto Freyre escreveu que "os nossos passes, os nossos pitus, os nossos despistamentos, os nossos floreios com a bola, o alguma coisa de dança e capoeiragem que marcam o estilo brasileiro de jogar futebol, que arredonda e às vezes adoça o jogo inventado pelos ingleses [...] tudo isso exprime de modo interessantíssimo o mulatismo flamboyant e ao mesmo tempo malandro que está em tudo que é afirmação verdadeira do Brasil".
Esse argumento que encontra no futebol o espelho para projetar uma identidade "afirmação verdadeira do Brasil" sugere que o brasileiro joga diferente porque, em essência, é diferente. Mais do que isso, é diferente num registro que deve causar orgulho. Enquanto outros povos jogam, os brasileiros encantam. É claro que esta chave de leitura estimula uma visão mítica que engloba de uma só vez a nação, o povo e o futebol. Mas no mito, entre o real e o irreal, também é possível localizar o ideal, aquilo que coletivamente se deseja.
Nesse sentido, é curioso observar, em cada edição da Copa do Mundo, como segmentos da sociedade brasileira são mobilizados para falar da seleção e do futebol e, ao fazê-lo, falam também de seus ideais e valores. A derrota para o Uruguai em 1950, por exemplo, trouxe consigo uma avalanche de críticas ao suposto mulatismo da formação social brasileira. Já as vitórias de 1958, 1962 e 1970 trouxeram a sua redenção e consequente consagração. Avançando um pouco no tempo, o que dizer sobre a seleção de 1994 que venceu e que, concomitantemente, deixou uma estranha impressão de não tê-lo feito do jeito verdadeiramente brasileiro? Quanto ao último selecionado, o que significam as obsessivas menções ao esforço e ao comprometimento do grupo? Por que a ênfase no jogo coletivo e na eficiência de um sistema defensivo em detrimento de sua capacidade de ataque despertou em alguns um sentimento situado entre o embaraço e a indignação?
Como foi dito acima, essas questões não dizem respeito apenas ao futebol. Elas também indicam quem somos ou, pelo menos, como queremos ser vistos. Esta dinâmica que envolve o fenômeno da identidade não pode ser adequadamente descrita como algo restrito ao âmbito do entretenimento e da alienação.
Quanto ao segundo pressuposto que acompanha a pergunta inaugural deste texto, ele é informado por um argumento elitista e autoritário. É elitista porque, ao afirmar algo pejorativo sobre o povo brasileiro, postula a existência de outro grupo, restrito, distinto, afastado deste povo alienado e, portanto, mais consciente. E é autoritário porque inclinado a acatar a ideia de que um povo incapaz de tomar o seu destino nas próprias mãos precisa ser constantemente tutelado. Por fim, não deixa de ser muito intrigante que este argumento elitista e autoritário também encontre no futebol, justamente no futebol, e durante a Copa, uma ocasião privilegiada para se manifestar.
Rafael Ginane Bezerra, doutor em Sociologia, é professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Administração da Universidade Positivo
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