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Nelson Rodrigues afirmava que o brasileiro é um Narciso ao contrário. Para ele, o brasileiro sofria do complexo de inferioridade diante das grandes potências pelo mundo afora, a comparar as mazelas do Brasil com as qualidades dos países estrangeiros. De certa forma ele tem razão: algumas comparações não devem ser feitas ou são imponderáveis. Mas, se ainda fosse vivo, ele acresceria que o brasileiro é um Narciso ao contrário e que foge do espelho.

O "ser brasileiro" criou uma redoma sobre ele, um conjunto de defesas psíquicas que o define como um ser alegre, tolerante, flexível, altruísta e pacífico, enfim, qualidades do indivíduo. O fato é que o brasileiro sempre foi mais benevolente com seu jeito de ser e agir do que com o Brasil e com seus irmãos, pois, para ele, o Brasil em que todos os demais brasileiros habitam não é o mesmo em que ele vive. Assim, a autocrítica e o autoconhecimento sobre o "ser brasileiro" é divorciada da realidade. O que existe no presente é a crítica às instituições públicas, a crítica sobre o modus vivendi de seus irmãos ou o modo de ser e de agir dos brasileiros como cidadãos.

O brasileiro sofre. E como sofre! De frente ao espelho ele não se reconhece, pois a imagem refletida não é a dele. Uma crise de identidade aos 514 anos de idade, com todos os remorsos, ódios e rancores sociais. Como pode, ele, um ser tão autêntico, sofrer com a realidade do Brasil? Sim, a realidade é a de que, para o irmão brasileiro sair da extrema pobreza, basta que ele possua uma renda equivalente a R$ 70 mensais. Sim, a realidade é a de que acontecem milhares de mortes anuais por intolerância: mulheres agredidas e executadas por seus maridos; homossexuais agredidos e mortos todos os dias; Sim, a realidade é a do racismo de cor e de classe social. Sim, a realidade é a de que o tráfico de drogas está instalado em todas as cidades brasileiras, provocando a morte imediata ou lenta – principalmente dos jovens. Sim, a realidade do país onde se vive é violenta, pois morrem anualmente mais de 57 mil brasileiros por absoluta ignorância dos condutores imprudentes e negligentes e por falta de um Estado que mantenha as estradas em condições de rodagem. Sim, a realidade é a de que no país ocorrem milhares de latrocínios anualmente. Sim, a realidade é a de que se justificam estupros em razão das roupas usadas. Sim, a realidade é a de que os governantes tratam a saúde e a educação como despesas e não como um direito e um investimento na condição humana de seus cidadãos. Sim, a realidade é a de que o outro brasileiro não é altruísta, pois ele invariavelmente gosta de levar vantagem: fura fila; estaciona em fila dupla e nas vagas destinadas aos portadores de deficiência e aos idosos; não devolve o troco errado; não cede seu lugar nos meios de transporte público a idosos, mulheres e homens que seguram seus filhos no peito. Enfim, julga a atitude e exige mais do irmão brasileiro e do Brasil do que dele mesmo.

E a angústia aumenta. Eis que, por omissão dele e de seus irmãos, vive-se num país em que a política se transformou em instrumento de obsessão pela manutenção do poder como um fim e não como instrumento de serviço à população; a maior corte da Justiça brasileira se tornou refém de quem a nomeia; a corrupção grassa em todas as esferas públicas e privadas; há um sentimento de impotência para mudar e há a certeza da impunidade ou a incerteza da punibilidade célere e proporcional ao crime praticado; há um Legislativo que não representa os anseios da população e que se transformou no balcão cartorial do Executivo, que se submete a essa condição em troca de cargos do próprio poder que o deslegitima.

A imagem refletida do "ser brasileiro" está desiludida. E o brasileiro, sob um pavor delirante, abre o armário atrás do espelho, retira do frasco e joga contra a mão espalmada dois comprimidos e os engole, antes que seja irreversível o surto de lucidez.

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