Gregos e hebreus, dois povos da Antiguidade, nos legaram um verdadeiro baú de sabedoria. Dos gregos herdamos a Odisseia; dos hebreus, a Bíblia, dois tesouros incalculáveis.
Usando a arte, metáfora e histórias verdadeiras, duas culturas tão distintas convergiram no louvor da prudência. Dentre os ensinamentos, destaca-se a importância de se evitar as tentações do dia a dia, de fugir da tendência de se buscar atalhos para os problemas da vida, a sonhada sombra e água fresca sem esforço. Eles nos ensinaram; será que aprendemos?
Pairam outras dúvidas no ar: Homero foi mesmo o criador da Odisseia ou apenas registrou o conhecimento acumulado em séculos de tradição oral? No caso da Bíblia, obra épica e sagrada ao mesmo tempo, as indagações seguintes podem trazer desconforto para quem interpreta a Escritura literalmente, mas o autor deste texto entende que as reflexões são necessárias para o desfecho do artigo.
Deus tentou mesmo purificar a espécie humana, como relatado em Gênesis, o primeiro livro da Bíblia cristã, ao facultar o dilúvio para eliminar os impuros? Teria Deus sido ingênuo a ponto de acreditar que bastaria afogar os homens maus para garantir uma boa linhagem dali em diante, escalando então o bondoso Noé para perpetuar a espécie depois de flutuar na arca junto com os bichos durante a inundação? Deus teria finalmente se curvado à natureza ruim dos homens, selando a eterna aliança ao prometer nunca mais interferir na essência humana? O diabo tentou mesmo Jesus três vezes, ou o episódio vivenciado no deserto consistiu apenas em alusões mentais do mestre?
E se tudo não passar de precaução didática do que a humanidade jamais deveria experimentar? Ou dito de outra forma: e se estes eventos forem providências para escaparmos de quem nos enfeitiça com prazeres momentâneos, soluções simplistas? Tanto a Bíblia quanto a Odisseia parecem bradar aos quatro cantos do mundo: acautelem-se diante das tentações.
Uma ressalva: você não precisa ser pessoa religiosa para apreciar a bíblia. Richard Dawkins, um ateu convicto e particularmente implacável contra o cristianismo, defende que a Bíblia seja lida pelas crianças na escola.
Voltando ao assunto: Odisseu, personagem central da Odisseia, mais conhecido entre nós por Ulisses, apesar de ser um herói destemido e presunçoso, tinha consciência das limitações de suas forças diante da má reputação das sereias. Na Bíblia, ninguém menos que o próprio diabo, figura repulsiva, se encarregou de testar Jesus. Numa das tentações, propôs a um Jesus faminto, atormentado pela fome, que invocasse seus poderes em benefício próprio, abreviando o sofrimento, transformando pedra em pão.
Ulisses, ao menos, foi tentado por criaturas agradáveis, belas sereias tentando seduzi-lo com músicas irresistíveis. Mas Odisseu não era bobo; o herói arisco e prevenido tapou os ouvidos da tripulação e ordenou que os marinheiros o amarrassem rigidamente ao mastro da embarcação, cujas cordas resistentes o salvaram de sucumbir aos falsos agrados das criaturas aladas com lindas vozes e beleza singular.
Sim, aladas. No tempo de Ulisses, as sereias se apresentavam em corpos de pássaros e delicadeza feminina, diferente daquelas que surgiram depois em outras mitologias habitando as águas, travestidas de peixe da cintura para baixo.
Aqui, no Brasil, há uma casta abrangente de sereias mutantes, além da Iara, a famosa Mãe-d’água. Reaparecem religiosamente de dois em dois anos, corporificando-se em feições radiantes, prometendo restabelecer o paraíso na Terra, mediante um novo dilúvio se for preciso, porém melhor direcionado. Multiplicar pães é para os fracos, nossas sereias propõem milagres de maior repercussão.
Como se precaver diante de incitações tão generosas? Segundo reza a lenda, há duas maneiras de derrotar uma sereia quando canta: vedar bem os ouvidos, como fez Ulisses, ou cantar melhor que ela.
Florentino Fagundes é professor de Matemática na PUCPR e escritor.
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