| Foto: Antônio More/Gazeta do Povo

Os sistemas de persecução penal atuais são ramos especializados da burocracia do Estado. No Brasil, os agentes que compõem o alto escalão desses aparelhos não são eleitos pelo voto popular, embora façam uso do monopólio da violência legítima. São admitidos para as carreiras via concurso público organizado pelas próprias instituições, que se retroalimentam do perfil que desejam. Não sofrem controle externo, nem sequer internamente temem resistência. Em geral, são talhados para perseguir fatos, porém não raro miram pessoas. Enormes aparelhos que os mantêm custam caro para a sociedade brasileira.

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Dessa vez, o alvo número um do Brasil é tido como a corrupção – em tese, a perpetrada pelo PT e por seu principal líder, Lula. Antes do PT, vivia-se no paraíso de Adão. Pois bem. Assente-se essa premissa: tenha o ex-presidente feito tudo o que alegam. Enquanto suposto líder do maior esquema de corrupção já revelado, deve sofrer pelos seus atos – não poderia ser diferente. Entrementes, nada justifica a coletiva de imprensa dada tempos atrás pelos procuradores do MPF, com recursos públicos e pirotecnia audiovisual.

É estarrecedor presenciar a espetacularização do processo penal

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É estarrecedor presenciar a espetacularização do processo penal, seja o investigado desse ou daquele partido. Ocorre que, quando agentes da burocracia jurídica buscam alavancar a opinião pública para a condução de um processo e perseguir pessoas, é preciso estar atento. No gozo de uma quase incontrolável independência funcional, esses agentes podem romper com as regras formais de atuação, aliando-se a setores da imprensa, definido o inimigo comum entre ambos.

De modo técnico, a ação penal pode ter início apenas com justa causa (no plano ideal), ou seja, lastro probatório mínimo, sob risco de inépcia. Essa não é apenas uma garantia do cidadão; é também um filtro para que se evitem disparos de festim e, por conseguinte, a desmoralização dos próprios órgãos públicos. Contudo, observa-se que o próprio MP, que é uno, não se entende. Promotores de Justiça de São Paulo dizem ter havido um “acordo de cavalheiros” entre o Judiciário paulista e o juízo federal em Curitiba para julgar Lula, no caso do tríplex. Teria havido um fatiamento irregular da denúncia, o que, num Estado de Direito, só pode vir a favorecer o réu.

Mas é preciso ter ponderação nesse momento. O discurso do inimigo trata da luta do bem contra o mal. Com isso, quebra-se a lógica de funcionamento da burocracia e passa-se a fazer política. Os precedentes judiciais são deixados de lado e o processo torna-se um fim, não o meio. Diria Thomas Hobbes, no Leviatã, que “as noções de bem e de mal, de justiça e de injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude são as duas virtudes cardeais”.

Curioso é que o desenho do MP brasileiro na Constituição de 88 é, acima de tudo, de órgão garantidor, único no mundo moderno. Por sinal, um Estado que respeita seus cidadãos não pode ter por justos e dignos de admiração quem age pela execração pública ou vaidade. Tentar convencer a todos de uma luta santa e promover o terror do imediatismo (fomentado pela mídia) pode revelar-se, ao fim, um risco para a democracia e a credibilidade das instituições. Não deveriam tomar para si uma cruzada contra uma forma de fazer política, porque acabam fazendo-a também, só que com indiferença diante da guerra que instalam e do retrocesso que contribuem por reproduzir.

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Rafael R. Viegas e Silvia A. Mongelós Viegas são mestres em ciência política pela UFPR.