Na obra Alice Através do Espelho, de Charles Dodgson, há um diálogo entre a pitoresca personagem Humpty Dumpty com a protagonista Alice, sobre o uso de palavras e autoridade:
“’Quando eu uso uma palavra, — Humpty Dumpty disse, com certo desprezo — ela significa o que eu quiser que ela signifique… Nem mais nem menos. A questão é — disse Alice — se você pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes. A questão é — disse Humpty Dumpty — quem será o chefe… E eis tudo.’”
Se não havia PAD em trâmite, a exoneração a pedido de Dallagnol configurou exercício regular de um direito, que, evidentemente, conforme o texto legal, não o torna inelegível.
Algo semelhante ocorreu na cassação do então deputado federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR), cuja decisão parece não ter sido fruto de fundamentos razoáveis e conforme as provas dos autos, mas, sim, decorrente de mero argumento de autoridade.
Que o ex-procurador da República é figura controversa e que muitos o acusam de chicana na operação Lava Jato, parece estreme de dúvidas. Todavia, isso não justifica o uso de métodos pouco ortodoxos; uma espécie de revanchismo, para se alcançar sua punição, via processual obliqua. E isso não se admite – não porque Dallagnol mereça algum privilégio, mas, sim, porque o Estado Democrático de Direito assim impõe.
A discussão está naquilo que é visto como uma ginástica interpretativa no texto da Lei Complementar 64/90. A referida legislação tem por inelegível o membro do Ministério Público (MP) que for aposentado compulsoriamente por decisão sancionatória; que tenha perdido o cargo por sentença; ou que tenha pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de Processo Administrativo Disciplinar (PAD).
Embora punido anteriormente, o ex-procurador não sofreu a sanção de aposentadoria. E os procedimentos que estavam em trâmite ainda eram nascituros, eram reclamações – algo diferente, na forma e no conteúdo, de um PAD, cujo arcabouço probatório tem maior relevo. Pode ser que mais à frente esses procedimentos dessem ensejo a um PAD? Pode ser que sim, mas também pode ser que não. Contudo, isso é um exercício de adivinhação que não serve à interpretação da norma e que não se coaduna com o que prevê a jurisdição. Logo, se não havia PAD em trâmite, a exoneração a pedido de Dallagnol configurou exercício regular de um direito, que, evidentemente, conforme o texto legal, não o torna inelegível.
Sabe-se que a lei não abarca palavras inúteis e que o intérprete parte da premissa que o legislador se esmerou em escolher expressões precisas, com o propósito de ser bem compreendido. Outrossim, é salutar que o direito seja interpretado de forma que não envolva inconveniências, ou conclusões inconsistentes. E não se pode olvidar, também, da segurança jurídica, que não convive com decisão pautada em juízos abstratos e sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Além de se equilibrar em suposição, a decisão tardia do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) quanto à cassação do mandato de deputado federal de Dallagnol coloca palavras que não existem na lei ou empresta-lhes outros significados e, assim, vai na contramão de valores caros à democracia, pois desrespeita a soberania popular e o voto de milhares de cidadãos, que são os juízes naturais dos candidatos a cargos eletivos. Espera-se, agora, que o Supremo Tribunal Federal (STF) coloque as coisas em seus devidos lugares e que se livre do signo da autoridade de Humpty Dumpty.
Fabio Simas é advogado e especialista em Direito Público, com ampla atuação, também, em Direito Civil.