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O cavalo de Troia no pacote anticrime

Sergio Moro: votação do pacote anticrime
O substitutivo aprovado por expressiva maioria do Congresso Nacional surpreende pela intromissão de ideias estranhas ao projeto original de Sérgio Moro. (Foto: Evaristo Sá/AFP)

O notoriamente chamado “pacote anticrime”, remetido pelo Executivo Federal ao Congresso Nacional no início do presente ano, tinha como finalidade principal o recrudescimento de legislação penal e processual penal brasileira, caracterizada pela sua extrema frouxidão. Iniciativas como o endurecimento do cumprimento das penas para integrantes de organizações criminosas e aos autores de crimes contra a administração pública – expressamente nomeados os crimes de peculato (apropriação ou desvio de recursos públicos) e de corrupção ativa e passiva – simbolizaram o espírito e o corpo do referido projeto. Portanto, o espírito da reforma legislativa sempre foi claro: constatados os altíssimos níveis da criminalidade nacional, propor medidas que não somente fossem viáveis face à lógica da processualística penal, necessárias ao direito penal, mas que também pudessem de fato ser racionalmente implementadas à luz do escasso orçamento de que dispõe o Estado brasileiro, por vez que entre a copiosa imaginação de alguns e a viabilidade do possível, surge a realidade, esta madrasta.

Não obstante, o substitutivo aprovado por expressiva maioria do Congresso Nacional surpreende pela intromissão de ideias estranhas ao projeto, tornando-o não meramente um corpo desconfigurado, ilógico ao seu escopo, mas um corpo legislativo em que, tendo sido inoculados vírus ou bactérias, possam estes próprios comprometerem o tecido e a saúde do corpo social. Nota-se com clareza em algumas propostas de inovação o claro espírito de proteção aos autores de crimes de colarinho branco (lavagem de dinheiro, organização criminosa, peculato, corrupção ativa e passiva, concussão etc.), provavelmente ali introduzidos por descuido ou inépcia de alguém que não atentou para seus efeitos danosos.

Assim, encontraremos algumas dessas armadilhas em dispositivos estranhos ao projeto anticrime, tal como originalmente concebido, notadamente: a) a introdução da figura do “juiz de garantias”; b) as alterações que praticamente inviabilizam a decretação da prisão preventiva (repletas de parágrafos com impedimentos à decretação de prisão cautelar que claramente visam intimidar o enquadramento do juiz na nova lei de abuso de autoridade); c) a simples e silenciosa troca da palavra “máxima” para “mínima” no que diz respeito ao novo instituto do acordo de não persecução penal. Tais inclusões representam um verdadeiro cavalo de Troia do Legislativo no projeto do Executivo, devendo inviabilizar que o sistema de Justiça criminal possa continuar aplicando prisão, tanto cautelar quanto definitiva, aos altos escalões da classe política e econômica.

Em relação ao chamado “juiz de garantias”, bem ao contrário do que o nome sugere, este não se alinha absolutamente com o espírito conformador do projeto anticrime tal como mandado ao Legislativo, porquanto em realidade o que “garante” é ser um entrave a mais na prestação jurisdicional, como se verá. Ao sabor do concebido, esta esdrúxula “segunda figura de juiz” seria chamada para atuar na fase investigatória, com vistas a resguardar o respeito aos direitos e garantias dos indiciados e assim conhecer, por exemplo, das medidas cautelares, eventualmente requeridas, no lugar do atual “juiz de direito”. Assim, como se já não houvesse um delegado de polícia concursado, um Ministério Público voltado à tutela das garantias constitucionais, uma advocacia atuante – para os mais pobres, uma vibrante defensoria pública –, tudo sob o pálio do poder judicial e seu “juiz de direito”, que analisam, apreciam, balanceiam, contrabalanceiam, denunciam, requerem e, por fim, o magistrado decide sobre eventuais medidas que tocam ao tema da liberdade e outros predicados constitucionais.

É ressabido: não será a figura de uma pessoa a mais, revestida do truque onomástico “juiz de garantias”, que assegurará absolutamente o respeito às garantias constitucionais; bem ao contrário, será somente um funcionário a mais para onerar os cofres públicos, cuja função já nasce com um olhar ideologicamente comprometido, pela simples razão de nascer sob o influxo de um preconceito com autoridades já constituídas, e com o olhar protetor justamente para aquele que o Estado aponta como tendo eventualmente praticado um crime.

Um truque de linguagem

Aliás, aqui já se percebe a preocupação para a driblagem semântica: enquanto “juiz de direito” é a autoridade constituída que tem por missão a aplicação das regras do Estado Democrático de Direito, ou seja, a integralidade do ordenamento jurídico, enxergando-o em sua visão sistêmica (direitos, obrigações e garantias em correlação), a novel figura volta-se precipuamente às “garantias”, donde seu vício de origem: garantias da sociedade? Garantias de vítimas que sofreram as agruras de um crime? Garantia de maior celeridade processual? Não, absolutamente: garantias dos investigados, antepondo-se uma nova autoridade pública, a pretexto de resguardar garantias constitucionais, contra a própria celeridade ou efetividade da investigação.

Assim, os olhos aqui se voltam à proteção dos já ultraprotegidos direitos/garantias dos indiciados, no país campeão mundial de lentidão da Justiça, por seu infinito cardápio de recursos e obstáculos à efetividade do processo. Não sem razão, porcentualmente frente ao número de habitantes, figuramos como campeões mundiais de homicídio; afinal, onde a justiça demora a ser feita ou não é firme o suficiente, é bem aí onde viceja a ousadia e a confiança na impunidade dos malfeitores.

Em revide a certas falácias

Argumentam os defensores da pretendida figura do juiz de garantias que o mesmo magistrado que indeferisse um habeas corpus contra o indiciado, ou deferisse uma medida cautelar contra o mesmo (prisão preventiva, busca e apreensão etc.), terminaria por ficar “contaminado” ou “suspeito” quando do julgamento definitivo, vale dizer, já estaria meio voltado a uma condenação do réu. Portanto, o preconceito motivacional contra a atuação da polícia judiciária estende-se agora ao juiz de direito: o mero fato de ter apreciado uma ou mais medidas durante a fase investigatória o tornariam “suspeito” para julgar.

A ser verdade uma tal estultice, apenas um juiz de garantias não bastará jamais à investigação. Quem sabe, então, uma equipe de “juízes de garantia” em prol do investigado, porque o mesmo que apreciasse uma medida cautelar contra alguém já estaria igualmente “contaminado” – o raciocínio é o mesmo – para também decretar-lhe uma prisão preventiva ulteriormente requerida. Não são, pois, bem assim, as etapas processuais (ou pré-processuais) diversas que trazem ou não uma suspeição, tampouco o número de vezes que o magistrado tenha de decidir nos autos.

Uma tal sorte de teoria é absolutamente incondizente com a realidade, podendo ser reduzida, quando muito, a simples hipótese de laboratório especulativo de algum autor. A ciência não casa seus dados com a fértil imaginação de hipóteses, porquanto, no mais das vezes, o simples fato de o magistrado condenar alguém contra quem já houvera decretado a custódia preventiva decorre do fato que, estatisticamente, contra quem já existam “indícios suficientes da  autoria do crime”(requisito  primário para a prisão preventiva), é muito provável que venha a ocorrer uma condenação.

E o “tribunal de garantias”, quando irão propor sua criação?

E, como se não bastasse, a ser lógico o que se pretende, faz-se imperiosa – por que, não? – a criação também de um “tribunal de garantias”, que possa em sede recursal analisar unicamente os inconformismos advindos da fase investigatória. Isto porque, se qualquer um desses analisasse um recurso ou ação advinda da fase investigatória, e de igual modo fosse apreciar também um recurso futuro, em fase já processual, estaria da mesma forma “suspeito”  ou “contaminado”.

Ademais, é sabido que, nesse particular, a “suspeição” ou “contaminação de ânimo”, quando existente, não nasce pelo número de vezes em que se conheceu dos autos, mas, qualitativamente (parentesco com a parte, amizade, inimizade capital etc.), bastando uma única intervenção no processo, sem qualquer sorte de conhecimento prévio.

Gastando mal o nosso dinheiro: um acinte à segurança pública

O que tem por embrião um preconceito – de que as garantias constitucionalmente tuteladas a todos os cidadãos são normalmente violadas em fase de investigação – não pode dar os melhores frutos, sobretudo quando é sabido faltar em torno de 4,4 mil juízes de direito na primeira instância em todo o território nacional. Assim, sem nem sequer número suficiente de magistrados para atuarem como tal, busca-se a criação da novidade que, a ser implementada, não somente toma do erário verba destinada ao incremento de número suficiente de juízes, como também furta-lhe a mais preciosa verba que poderia ser toda ela destinada à prevenção de delitos. Ou alguém negará o sucateamento do aparelho policial estatal no que tange a recursos humanos, operacionais, materiais etc., em um país em que falta até mesmo verba para as viaturas policiais atenderem a ocorrências?

Desse modo, não é de estranhar que a malfadada figura tenha sorrateiramente pego carona no projeto anticrime, sendo introduzida sem um maior debate e aprovada no Congresso, ao ponto de deformar-se o projeto original. Na América do Sul o encontramos no processo penal paraguaio, colombiano, chileno, e, tal como na Itália (onde se localiza um “primo distante”), todos esses apresentam ainda substanciais diferenças do que se pretende no Brasil, especialmente quando aqui é a polícia quem promove a investigação, enquanto nos países sul-americanos citados o comando investigativo é do Ministério Público.

A prisão preventiva

A prisão preventiva, permeada por narrativas falsas quanto à sua larga utilização pelo Poder Judiciário, notadamente pela primeira instância, foi significativamente modificada – dificultando sobremaneira a efetivação da aplicação penal, na contramão do projeto original. A inclusão do §3.º no artigo 282 do Código de Processo Penal configura-se verdadeiro cartão de visitas no que se refere a prisões e medidas cautelares, em assustadora novidade capaz de fazer não somente hipoteticamente corar integrantes da máfia italiana, como certamente irá promover uma retumbante gargalhada dos integrantes das organizações criminais brasileiras: a regra geral de que o juiz deverá intimar o pretenso preso preventivo a se manifestar antes de decretar a sua prisão.

Não, o leitor não leu incorretamente, é isso mesmo: o juiz, antes de decretar a prisão preventiva do indiciado ou réu, deverá perguntar a ele se deve mesmo fazê-lo. Se já existe um grande rol de medidas substitutivas da prisão preventiva no CPP, quando se delibera mesmo postulá-la, é justamente por imperiosa e urgente necessidade de segregação provisória da pessoa, de modo que, mais além da absoluta previsibilidade do teor negativo da resposta do investigado/réu (“Excelência, não é caso de preventiva, tenho trabalho e bons modos”), o que o Estado fará será alertá-lo irresponsavelmente, verdadeiramente incentivando-o à fuga. Ou alguém espera que justamente o réu que mais coloque em risco a “instrução criminal” ou a “ordem pública” (duas das hipóteses para a decretação da preventiva), e cuja urgência da prisão se faça necessária, aguardará imóvel a sua própria segregação?

Os demais parágrafos do mesmo artigo somados aos parágrafos do novo artigo 315 do diploma processual buscam sempre dificultar a decretação da prisão preventiva. Assim, expressões como “invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão” e “empregar conceitos jurídicos indeterminados” mostram claramente a falta de técnica legislativa apta a causar verdadeiro “abre-alas” nas cadeias brasileiras. Portanto, os novos textos referem-se a hipóteses esdrúxulas de impossibilidade de decretação da prisão preventiva, mas não sem motivo, pois ligados umbilicalmente à “manifesta ilegalidade” da nova Lei de Abuso de Autoridade (em seu artigo 9), de forma a novamente colocar a espada de Dâmocles pendente sobre a cabeça dos  juízes brasileiros.

Consequentemente, o pacote anticrime, com intuito de fortalecer o papel do juiz criminal no combate à criminalidade, acabará por enfraquecer ainda mais o omisso Estado no combate a toda sorte de criminalidade, na figura do juiz atemorizado por uma legislação protetora dos mais altos criminosos.

Um vírus silencioso e letal

Por fim, e o mais grave (tornando o pacote anticrime em instrumento decorativo e protegendo potenciais criminosos do colarinho-branco), modificou-se o dispositivo que regula o novo instituto do acordo de não persecução penal. O projeto original, seguindo o texto do artigo 44 do Código Penal, buscava o acordo pré-processual daqueles crimes com pena máxima não superior a quatro anos. Contudo, ardilosamente o substitutivo ampliou a possibilidade de acordo para crimes com “pena mínima inferior a quatro anos”, permitindo que incontáveis crimes graves ligados ao colarinho branco sejam impedidos de ser punidos com prisão.

Ora, crimes como corrupção ativa e passiva, peculato, concussão, lavagem de dinheiro, organização criminosa e tráfico de influência têm penas mínimas inferiores a quatro anos. Por óbvio, o novo dispositivo repercute na prisão preventiva, pois deixa de existir fundamentação jurídica para a sua decretação; afinal, se o Ministério Público estaria obrigado a oferecer o acordo, que torna inviável a pena definitiva de prisão, muito menos poder-se-ia requerer a prisão preventiva do acusado. A irresponsabilidade na modificação é tão grande que estipula o oferecimento de acordo a criminosos com armas de grosso calibre, tais como os incontáveis fuzis circulantes no território nacional, visto que o crime de porte ilegal de arma de fogo de uso restrito é punido com pena mínima de três anos, fazendo que o Ministério Público obrigue-se a ofertar prestação de serviços à comunidade àquele sujeito que domina a própria comunidade.

Tais modificações – notoriamente, a silenciosa modificação no acordo de persecução penal, que muda todo o sentido do instituto – mostram que no Brasil nada se cria, mas tudo se copia (e com requintes de crueldade). No apagar das luzes de 2019, voltamos à Itália de 1994, com o “Decreto salva-ladrões”, que proibiu a prisão preventiva para crimes contra a administração pública e o sistema financeiro, admitindo-se apenas a prisão domiciliar. À época, o ministro da Justiça italiano, Alfredo Biondi, referia que para envolvidos em crimes do colarinho branco bastava a prisão domiciliar, enquanto a prisão preventiva ficaria restrita “a particulares tipologias de crime de elevado alarme social”, isto é, a delitos “de sangue” particularmente.

Mas também em 2019, repetimos neste artigo a reação de Di Pietro, magistrado e espécie de porta-voz da Operação Mãos Limpas, que serve de alerta ao cavalo de Troia no pacote anticrime, quais sejam: tais enxertos não permitirão mais afrontar eficazmente os delitos investigados, e acusados com provas efetivas de crimes graves de corrupção praticamente não poderão ser mais presos, nem mesmo para evitar que continuem a delinquir e a tramar para impedir a descoberta dos precedentes delitos cometidos.

O cidadão já conseguiu entender o que se fez com o “Projeto Moro”, transformando parte dele não em instrumento de combate ao crime, como propunha o ministro, mas em um verdadeiro incentivo, especialmente para aqueles delitos que praticados pela “crème de la crème” da criminalidade político-econômica nacional? Em nome da cidadania, pedimos: vete isso, senhor presidente, porque até a indecência deve contemplar limites!

Edilson Mougenot Bonfim, doutor em Processo Penal pela Universidade Complutense de Madri e fundador da Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais, é procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo. Bruno Amorim Carpes é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e membro do Núcleo de Pesquisa e Análise da Criminalidade da Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais.

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