A dificuldade em tratar do catolicismo no cinema é a amplidão do tema: muitas são as conexões possíveis, tanto na vida dos cineastas quanto no enredo e no simbolismo dos filmes. Acontece que, apesar da amplidão do tema, são conexões discretas, quase ocultas – simplesmente porque não é um tema muito explorado pela crítica, nem pela academia. É infinitamente mais fácil ler e pesquisar sobre as relações entre cinema e marxismo, por exemplo – pela abundância de referências bibliográficas.
Outra dificuldade é que o cinema não nasce do nada: é uma arte distinta que incorpora elementos de outras artes, anteriores. Os filmes adaptam ou são inspirados em obras literárias, teatrais, integram as artes plásticas, a performance, a fotografia, a música, direta ou indiretamente.
Todas essas artes, por sua vez, se relacionam intimamente com a religiosidade de uma forma geral e com o catolicismo em particular. Por exemplo: o teatro de Shakespeare, que era católico, é herdeiro direto dos grupos teatrais que interpretavam a Paixão de Cristo, como diz a teatróloga Barbara Heliodora.
Na verdade, arte e religião já foram uma coisa só. “Houve épocas em que a arte já foi inseparável da atitude e ação sagrada, mítica e religiosa”, diz Ernesto Grassi no clássico livro Arte e Mito. A tragédia grega, segundo Ortega y Gasset, é nada mais que religião. “O mito é o ponto de partida de toda poesia, inclusive da realista”, diz ele.
No cinema de terror dos anos 80, chama a atenção a dependência dos objetos especificamente católicos: a cruz, a água benta, a benção, a igreja, e também o padre
André Bazin escreveu: “O cinema já possui, em si mesmo, um milagre”. Bazin era católico e escreveu esta frase no texto Théologie et Cinéma publicado na revista Esprit em 1951. Bazin lembra que o Evangelho e os atos dos Apóstolos estão entre as primeiras grandes “block busters” do cinema, que ele chama de “best sellers de l’ecran”, tanto na França como nos Estados Unidos. Não estranhamente, este texto nunca entrou nas coletâneas do autor publicadas no Brasil.
No que consiste este milagre? Primeiro, evidentemente, o registro do tempo. Diz ele: “A religião egípcia, toda ela orientada contra a morte, condicionava a sobrevivência à perenidade material do corpo”. O objetivo é, segundo ele: “Salvar o ser pela aparência”. A invenção da perspectiva, para Bazin, é o momento em que o pintor decidiu renunciar ao simbolismo em relação ao realismo. É por isso que, ainda segundo ele, “a perspectiva é o pecado original da pintura ocidental”, que só vai ser devidamente corrigido com a invenção da fotografia e do cinema por satisfazerem completamente a obsessão pelo realismo.
Nesse sentido, o cineasta soviético Andrei Tarkóvski estava muito bem situado na tradição que ele se inseriu ao fazer o filme Andrei Rublióv, sobre o pintor russo de ícones. Para fazer o roteiro, ele leu a obra de Pável Florenski, que não estava publicada na época (em plena URSS, a mesma que mandou o filósofo russo a um gulag, onde terminou sendo morto).
Com exceção de Stalker, é possível ver ícones em todos os filmes de Tarkóvski. Mesmo em Solaris, uma ficção científica, vemos ícones na estação espacial ao redor do planeta que dá nome ao filme. Em A infância de Ivan, filme que se passa na guerra, vemos ícones na parede de um prédio em que os soldados habitam e nas ruínas de uma igreja destruída.
A perspectiva inversa, teorizada principalmente pelo filósofo russo Pável Florenski, é uma forma pictórica de representação do espaço tridimensional que não obedece aos cânones estabelecidos da perspectiva linear.
Tarkóvski, apesar de ortodoxo russo, tem em suas obras profundas relações com o catolicismo. O escritor pernambucano Fernando Monteiro o chama de “cineasta da Madona do Parto”, referência à pintura de Piero della Francesca da Virgem Maria grávida que aparece no filme Nostalgia. No filme há um cena inesquecível, em que uma imagem da Virgem feita com tecidos é aberta, de onde saem pássaros, cobrindo a igreja.
Tarkóvski foi amigo e admirava o cinema de Robert Bresson. Bresson está para o catolicismo assim como Tarkóvski está para a ortodoxia: os dois são profundamente religiosos tanto na vida pessoal quanto em suas obras.
Bresson é o cineasta mais influente do cinema francês. Não é à toa que Jean-Luc Godard escreveu que Bresson é o cinema francês, assim como Doistoiévski é o romance russo e Mozart é a música alemã.
Godard cita em um dos seus filmes a frase de Bresson: “No cinema, não se trata de dirigir alguém, trata-se de dirigir-se a si mesmo”. A frase foi tirada do livro Notas de um cinematógrafo, em que ele faz uma reflexão sobre o cinema e expõe seu método de criação artística. Em comum entre ele e Tarkóvski, há a forma com que lidavam com atores: privilegiando atuações menos expressivas, o fato de terem sido bem recebidos no especialmente no Festival de Cannes, o de ganharam prêmios separadamente e juntos. Em 1986, dividiram o grande prêmio do Júri.
“Gostaria de ver outra coisa na tela além de corpos em movimento. Gostaria de tornar sensível a alma e a presença de algo superior que está sempre lá… De alguém que é Deus”, disse Bresson.
Existem também grandes diferenças entre os dois cineastas, principalmente no que se refere à dimensão das produções: Tarkóvski teve à disposição a máquina soviética, apesar dos embates constantes com a burocracia do país. Não obstante viver num Estado oficialmente ateu e que perseguiu religiosos, sua obra é profundamente transcendente.
Não é só em cineastas assumidamente religiosos, e que tratam de temáticas religiosas, que o elemento transcendente está presente no cinema. Por exemplo: o grande momento do cinema de terror foi a década de 1980, quando foram feitos os maiores clássicos do gênero – filmes de Dario Argento, Wes Craven, John Carpenter. Para que esse tipo de filme de terror faça sentido, é preciso que existam Deus e o demônio, e que exista a transcendência para um outro plano. Ou seja, como diz Mircea Eliade, o espaço não é homogêneo. Essa é a chave da perspectiva do homem religioso. No cinema de terror desse período, chama a atenção também a dependência dos objetos especificamente católicos: a cruz, a água benta, a benção, a igreja, e também o padre. Tratarei nos textos seguintes aqui na Gazeta do Povo mais detidamente sobre este assunto – o importante é notar que não é só no cinema de autor que a visão do homem religioso se impõe no cinema. E não só a visão do homem religioso, mas os símbolos católicos especificamente. Foi por que isso que Manuel S. Fonseca escreveu: “Faça-se justiça ao catolicismo. Essa religião de genuflexões, de padres-nossos e ave-marias, de em nome do pai e do filho, de mea culpa, mea culpa e salve-rainhas, é a mais cinematográfica das religiões. O catolicismo fez-se para plongées de púlpito, contra-plongées de altar, para o grande plano de sacrário, hóstia e cálice, para o plano geral da peregrina luz no interior de uma catedral. Vai-se à missa como se vai ao cinema e, em noites felizes, saía-se do cinema com a alma de crente que uma missa lavou.”
Josias Teófilo é diretor de cinema.
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