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No dia 18 de março passado, o jornalista Tiago Cordeiro publicou um texto na Gazeta do Povo, sob o título “o que foi o terror vermelho, a campanha bolchevique de intimidações e assassinatos”, no qual ele descreve os horrores, a crueldade e a sanha sanguinária com que os bolcheviques passaram a anunciar, desde o início das revoltas na Rússia em 1905, que iriam exterminar seus inimigos.
A revolução se concretizou a partir de 1917 até pelo menos 1922, quando se concluiu uma etapa da expansão da União Soviética, cujo saldo em assassinatos de pessoas de seu próprio povo, desarmadas, em tempo de paz, faz parte de um dos maiores genocídios da história humana.
As palavras de ordem eram: “Não estamos lutando apenas contra indivíduos, mas exterminando a burguesia como classe”, ditas por Martin Latsis, chefe do serviço secreto bolchevique na Letônia. Ou ainda: “Para vencer nossos inimigos, precisamos ter conosco 90 milhões dos 100 milhões de habitantes da Rússia soviética. Quanto ao restante (portanto, 10 milhões), eles precisam ser aniquilados”, como disse o líder bolchevique Grigory Zinoviev.
O texto cita também a monstruosa afirmação de Leon Trotsky que o terror vermelho era como “uma arma usada contra uma classe condenada a morrer, que não quer morrer”. Num contexto de guerra civil, que se estendeu entre 1917 e 1922, com saldo de 9 a 12 milhões de mortos e até 2 milhões de refugiados, a Cheka (comitê da polícia secreta da União Soviética) se especializou em massacrar seres humanos sem processo e sem pretexto.
Como isso pôde ser feito naquela parte do mundo? Em certa medida, porque um cidadão chamado Karl Marx dissera que era preciso extinguir toda uma classe de capitalistas e proprietários de terras, acabar com um tal “capitalismo”, coletivizar tudo e implantar um novo modo de produção: o comunismo, que acabaria com a desigualdade e tiraria milhões da pobreza.
Não sou um especialista em revolução comunista, mas li bastante a respeito. Uma coisa sempre me intrigou: por que um sistema que falava aos pobres e miseráveis, contra o capital e contra a propriedade privada, afirmando que a miséria de uns (os operários) vinha da exploração de outros (os capitalistas), ecoando um tipo de pensamento parecido com o discurso religioso, acabou fracassando rotundamente e deixou um rastro de sangue jamais visto?
No mínimo 120 milhões de seres humanos foram assassinados sob as tentativas de implantação do comunismo, ou socialismo se assim o quiserem, apenas durante o século 20. É intrigante que a pregação religiosa e a teoria marxista se afinavam nas propostas de combater a pobreza, a exploração do operário, a propriedade privada e a existência de classes, mas a força de ambas juntas não impediu o fracasso do comunismo antes do fim do século 20, após exterminar milhões daqueles que diziam defender.
Marx era ateu, combateu a religião, que ele dizia ser “o ópio das massas”, criticou a crença em Deus e afirmava que os pobres e miseráveis eram conformados, resignados, humildes e sem consciência de que sua miséria vinha da exploração imposta pela burguesia, os proprietários do capital. Alguns dizem que o erro de Marx foi brigar contra dois inimigos poderosos ao mesmo tempo: Deus e o capital.
Sempre achei estranha a inclinação de alas da igreja católica para o marxismo (vide a teologia da libertação), mesmo Marx sendo ateu, um inimigo da religião que, para ele, era um mal por fazer o crente aceitar sua miséria e vê-la como “desígnios de Deus”. Deus e o capital: dois inimigos contra os quais Marx brigou ao mesmo tempo. Isso talvez ajude a explicar o fracasso do comunismo real.
Olhando em retrospecto, parece que realmente seria mesmo difícil vencer os dois inimigos simultâneos. Vencer Deus pela vitória do ateísmo revelou-se impossível. A fé humana é maior que as vãs teorias sociais. Vencer o capitalismo, conquanto este tenha seus defeitos (desigualdade e instabilidade social), revelou-se impraticável, seja porque a economia comunista não funciona, não produz riqueza, acaba com a liberdade e extermina quem não concorda com a ditadura, que nunca é do proletariado, mas sempre de intelectuais e burocratas estatais.
O que teria sido do movimento comunista mundial se Marx tivesse brigado contra o capital, mas se aliado a Deus?
José Pio Martins, economista, é reitor da Universidade Positivo.