Um médico do início do século passado não estranharia ser chamado para ver desde o olho, passando pela garganta, até alcançar varizes em membros inferiores de seu paciente. Em tudo ele opinaria, prescreveria uma conduta em prol da cura, do alívio ou do mero consolo oferecido ao seu paciente.
Com o rápido avanço tecnológico, novas possibilidades se abriram, assim como surgiram novas necessidades profissionais e técnicas. O catálogo de doenças conhecidas, catalogadas e tratáveis se expande a cada ano, assim como se expandem as opções de fármacos e cirurgias. O papel do médico na sociedade também ganha muito destaque, o que fez com que a classe profissional ingressasse em uma elite econômica e política, por concentrar meios de ação ao lado de certo elitismo intelectual.
Com o intuito de operar novos aparelhos e se aprofundar em conceitos específicos cada vez mais complexos, surgiram novas especializações e subespecializações. O médico que antes olhava garganta, nariz, orelha e olhos logo examinava somente os olhos. No presente século, já se espera do oftalmologista que escolha áreas ainda mais específicas. Temos o neuroftalmologista, o orbitólogo, o glaucomatólogo, o especialista em córnea e doenças externas, o retinólogo, o estrabólogo, o onco-oftalmologista e o cirurgião plástico ocular. No presente, inclusive, há quem se dedique em especial a determinada condição dentro de uma subespecialidade. Há, por exemplo, o oftalmologista glaucomatólogo que se tornou destaque em tratamento de glaucoma agudo de ângulo estreito por causa de suas pesquisas e de sua prática clínica extremamente eficaz e direcionada para tal problema.
Uma crítica que já se tornou lugar-comum é a de que a superespecialização estreitaria a visão geral do indivíduo, impossibilitando-o para uma visão mais ampla do ser humano e aumentando o risco de “deixar passar” alguma condição de saúde. Seria uma forma de barbarismo, de mediocrização da prática profissional e até mesmo da condição social.
Em defesa da especialização progressiva de nossos dias, há o contexto de grande complexidade que se coloca nos cuidados com a saúde
Outra crítica é a de que tais especialistas estariam restritos a áreas de atuação extremamente limitadas e condicionadas a contextos que provocariam grande dependência de outros profissionais. Por exemplo, uma cidade pequena com poucos oftalmologistas não suportaria um especialista em órbita que não tivesse bons conhecimentos de oftalmologia geral.
Em defesa da especialização progressiva de nossos dias, há o contexto de grande complexidade que se coloca nos cuidados com a saúde. Equipamentos e técnicas cada vez mais complexos e delicados surgem a cada dia, exigindo treinos cada vez mais específicos. Em busca de resultados terapêuticos melhores e maior qualidade de vida, cada vez mais os médicos têm de se dedicar a procedimentos extremamente específicos e delicados. Além disso, um especialista responsável sabe muito bem de sua necessidade em manter-se atualizado nos conhecimentos gerais de sua área, conhecendo os principais avanços de sua especialidade e da medicina de forma geral.
Sobre a dependência profissional em relação a outros colegas, ela não é novidade, pois a necessidade de buscar opiniões com outros médicos e até mesmo com leigos que possam oferecer algo de valor para a saúde do paciente é reconhecida desde os tempos hipocráticos. O bom médico nunca receou pedir ajuda e trabalhar em equipe, desde suas raízes éticas na Grécia Antiga até a atualidade, em prol do bem de seu paciente. E, por falar em ética, o bom médico também nunca ousou negar a necessidade de prosseguir sua especialização enquanto, ao mesmo tempo, se atualizava em assuntos gerais da medicina como um todo.
Há quem diga ser difícil obter o nível exigido de especialização por causa do rápido acúmulo de conhecimento e da rápida evolução das técnicas empregadas, e manter, ao mesmo tempo, a capacidade de enxergar o ser humano de forma sistêmica. Estão certos, realmente é difícil. Como diriam os médicos hipocráticos em um distante passado: “A vida é breve, a arte é grande, o tempo é fugaz, a experiência é enganosa e a decisão é difícil. O médico deve estar pronto não só para executar seu dever, mas também para assegurar a cooperação do paciente, dos familiares e dos de fora”.
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Ser médico nunca foi fácil, e não é agora que vai começar a ficar. Ser médico é responder a um difícil e exigente chamado, é lutar pelo bem de seu paciente. É saber que o estudo será constante, até o cerrar dos olhos, até o último sopro de vida, e que sempre há mais para se saber acerca do homem.
Talvez o futuro reserve à medicina habilidades ainda mais refinadas e complexas, capazes de operar tecnologias avançadas que realizarão façanhas de enorme complexidade. Contudo, cada vez mais, o que se espera do médico é a conduta humana e competente de um profissional que consegue caminhar pelas mais diversas perspectivas da vida de seu paciente e da sociedade. Tal expectativa somente será suprida por uma vida dedicada ao estudo e à busca da excelência, por meio do domínio de ferramentas avançadas, da vivência e da participação em congressos e cursos de atualização, o que necessitará de alto investimento de recursos, incluindo o mais precioso de todos: tempo.
Não há solução para o dilema generalização versus especialização, há somente uma promessa: a de que cada vez mais conhecimentos e técnicas complexas serão exigidas, e a de que o conhecimento geral acerca do homem sempre será necessário, assim como é necessário o conhecimento da profissão como um todo e da sociedade, com o objetivo de aplicar adequadamente os mais refinados avanços.