Nos termos da lei (art. 4.º, caput, Lei 12.850/2013), o juiz, “a requerimento das partes”, poderá analisar eventual acordo colaborativo firmado entre as forças dialéticas da relação penal. Ou seja, a delação premiada é uma faculdade volitiva dos sujeitos do processo e, não, um direito potestativo deste ou daquele. Com efeito, uma vez feita a oferta colaborativa pela acusação, não basta uma simples mudança dos ventos para se alterarem a ordem dos acontecimentos. Como ato de fé pública que é, a proposta de colaboração premiada gera consequências jurídicas imediatas à Promotoria: ao invés do antagonismo litigioso, há a opção deliberada por uma pauta de comunhão de esforços com vistas à implementação eficaz da responsabilização punitiva em instrumento contratual específico.
É lógico que nem todas negociações iniciadas resultarão em acordos definitivos. As partes têm o direito de repensar a estratégia adotada, podendo declinar da tentativa de composição para medirem forças na praça pública do processo judicial. Tanto é verdade que o art. 4.º, §6.º, da Lei 12.850/2013 faz questão de consignar que “as partes podem retratar-se da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor”.
Mas há, aqui, uma diferença dinâmica substantiva: se a defesa pode levantar da mesa de negociação por simples ato de vontade, a acusação, quando o fizer, tem o dever de bem motivar as razões que justificam a ruptura colaborativa. O princípio da motivação dos atos públicos – decorrente de um Estado de Direito pautado por racionais jurídicos superiores e, não, pelo mero capricho de interesses arbitrários – ganha especial relevo em casos de natureza penal, impondo ao Ministério Público o incontornável ônus de fundamentar, com clareza e precisão, os motivos que justificam a retratação, parcial ou total, de eventual proposta colaborativa.
É cediço que todo e qualquer processo de justiça pressupõe limites e equilíbrio de forças
Por assim ser, verificada a insuficiência ou irrazoabilidade dos motivos apresentados pelo MP, pode o colaborador, à luz da garantia do acesso à Justiça, buscar amparo judicial para a retomada das negociações, com vistas ao bom termo da colaboração entabulada. Isso porque a liberdade do cidadão não pode ficar à mercê de manobras acusatórias imotivadas ou com motivações despidas de densidade jurídica suficiente.
Como bem explica o professor Stephanos Bibas, o controle judicial em dinâmicas de plea bargain é uma instância “ex post” de revisão da discricionariedade acusatória. Frisa-se, por relevante, que a lei brasileira, em bom tom, não hesitou em garantir a plena sindicabilidade judicial em acordos de colaboração premiada. A regra do art. 4.º, §8.º, da Lei 12.850/2013 é categórica ao prever que “o juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto”.
Como se vê, o modelo brasileiro de controle judicial da colaboração premiada é amplo e fundo, autorizando a direta intervenção do juiz competente para fins de garantia e efetividade de uma ordem jurídica justa, ainda mais em uma instância de responsabilização penal. A lei, com cautela e minúcia, determinou ao magistrado, no juízo de homologação, a imperativa análise da “regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor” (art. 4.º, §7.º, da Lei 12.850/2013).
Leia também: Crime sem processo no Brasil? (artigo de Gustavo Scandelari, publicado em 16 de janeiro de 2019)
Por tudo, resta claro que a colaboração premiada, no Brasil, não é um cheque em branco punitivo nem uma carta de alforria à impunidade festiva. Há limites institucionais e normativos de observância cogente. Entre os fluxos e refluxos do presente, eleva-se a experimentada advertência de Frank H. Easterbrook de que “imperfections in bargaining reflect the imperfections of an antecipated trial”, sendo imperioso, portanto, aperfeiçoar os processos internos da negociação para bem balancear o ímpeto acusatório com as inegociáveis garantias constitucionais da defesa.
No cair do dia, é cediço que todo e qualquer processo de justiça pressupõe limites e equilíbrio de forças. As lógicas de colaboração premiada não fogem a essa regra, sendo um dever do Poder Judiciário proteger a lei e impor a paridade de armas no bojo das novas dinâmicas criminais contemporâneas.
Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr. é advogado e Conselheiro do Instituto Millenium.
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