| Foto: Valterci Santos/Arquivo Gazeta do Povo

O acontecimento recente em um ônibus em São Paulo, quando um homem ejaculou sobre uma jovem que jamais consentiu sobre esse ato, acendeu rumoroso debate sobre a violência contra a mulher e os mecanismos jurídicos para coibir essas condutas. Houve justificado clamor público decorrente da soltura do agressor, horas depois, em audiência de custódia, por ausência de tipicidade para o crime de estupro, sob a alegação de não ter havido nem constrangimento e nem violência.

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Dados estatísticos apenas demonstram o óbvio: a mulher é a pessoa mais vulnerável em casos de crimes sexuais, constituindo a imensa maioria de suas vítimas. Tendo-se esses dados como norte comprovado, cabe-nos, como sociedade e como juristas, compor uma sistemática de proteção, de modo a prevenir, garantir, punir e evitar ataques sexuais, de qualquer natureza, contra as mulheres.

É dessa forma que a civilização brasileira deve se apresentar: por meio de um pacto social, onde pessoas, ideias e instituições repudiam um estado de natureza selvagem, de modo a garantir uma vida digna a todos os seres humanos, independentemente de seu gênero. Nossa principal norma, a Constituição Federal, já aduz em seus primeiros artigos a principiologia que abrange a dignidade da pessoa humana em uma sociedade livre, justa e solidária, que repudia todo preconceito e discriminação.

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O sistema jurídico de proteção à mulher falhou miseravelmente

Diante desse cenário constitucional, como explicar que aquele que ejaculou sobre a jovem no ônibus viu-se livre momentos depois, de modo que, após algumas horas, voltou a delinquir contra outra mulher? Não há outra conclusão, senão a de que o sistema jurídico de proteção à mulher falhou miseravelmente.

Mesmo depois de editada a Constituição Federal, em 1988, a sociedade brasileira vem passando por mudanças que exigem uma nova conformidade na interpretação e na aplicação de direitos e garantias. Dentre essas exigências está a necessidade de melhor proteção à mulher, o que terminou por ocorrer, ao menos juridicamente, no caso que redundou na impunidade do agressor de Maria da Penha. Em meio a severa pressão nacional e internacional, editou-se a Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, que trouxe um novo patamar para a proteção da mulher.

Mas seria constitucional definir formas de violência contra a mulher na Lei Maria da Penha para aplicá-las somente em situações domésticas e familiares contra a mulher? Parece correto deixá-la desprotegida em todas as outras situações?

Para os fins deste texto, vale destacar o contido na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida como Convenção de Belém do Pará. Estando diante de tratado internacional que versa sobre direitos humanos, trata-se de, no mínimo, norma supralegal, de modo que deve ao menos nortear a aplicação das leis aos casos concretos. O artigo 2 da Convenção define que a violência contra a mulher compreende “abuso sexual, tortura, maus tratos de pessoas, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no lugar de trabalho, bem como em instituições”. A mera leitura da norma da Convenção de Belém do Pará já evidencia que a interpretação da palavra “violência”, quando a mulher é vítima, ganhou nova dimensão.

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Leia também:Por uma vida segura e livre de violência contra as mulheres (artigo de Xênia Mello, publicado em 7 de junho de 2016)

Leia também:  Até quando seremos assassinadas pelo machismo? (artigo de Tania Tait, publicado em 25 de março de 2015)

Voltando ao crime de estupro contra a mulher, percebe-se que adotar a tradicional compreensão de que a elementar “violência” configura apenas o esforço físico empregado contra a vítima significa ignorar a Constituição Federal e tratados internacionais adotados pelo Brasil. Nesse sentido, a elementar violência não significa “apenas” socos, golpes musculares ou uso de armas contra a mulher estuprada. Essa elementar “violência” tem, atualmente, nova estatura em seu significado. A Lei Maria da Penha, no artigo 7.º, inciso III, diz que a violência sexual contra a mulher deve ser entendida “como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força”. Não seria aquele asqueroso ato do agressor do ônibus na Avenida Paulista uma violência contra a mulher? Sob o aspecto do constrangimento, a vítima não queria ser objeto da lascívia do agressor. O auge do ato sexual do delinquente a atingiu fisicamente, algo que, muito além de a intimidar, a humilhou severamente.

O caos legislativo e a inércia do Congresso Nacional em promover uma legislação minimamente decente não nos autoriza a desproteger as mulheres. É preciso interpretar e alcançar o sentido das normas que temos, de modo a satisfazer a dignidade da pessoa humana. Por esses motivos, compreende-se que houve, sim, crime de estupro no caso da Avenida Paulista, pois ejacular em uma mulher é ato de constrangimento, praticado com violência, cujo significado está descrito em lei e em tratado internacional.

Rafael Fernandes Souza Dantas é delegado de Polícia Federal e professor da LFG.