O cristianismo não é uma religião e muito menos uma espiritualidade. É um acontecimento. Mais especificamente, o acontecimento de uma pessoa, Jesus de Nazaré, e tudo o que dele deriva. Cristão é, antes de tudo, não alguém acostumado a praticar certos ritos ou alguma moralidade específica. O cristão é aquele que reconhece, no homem Jesus de Nazaré, digamos logo de cara, o próprio Deus – o Criador, o Ser, no qual tudo consiste – vindo na carne.
Aos nossos ouvidos laicistas e modernos, isso pode parecer uma loucura, mas foi exatamente assim que Jesus se apresentou às pessoas e foi exatamente por isso que ele foi morto: por se apresentar como o próprio Deus vindo na carne. Para os líderes judeus, zelosos da absoluta separação entre Deus e os seres humanos, isso era uma blasfêmia punida com a morte. Os romanos que governavam a Judeia se encarregaram da execução não porque a reivindicação de Jesus ferisse o direito romano (o Império Romano tinha um panteão de divindades, incluído o próprio imperador), mas por medo de que os líderes judeus desencadeassem uma rebelião contra Roma.
O cristianismo é um acontecimento, o acontecimento do próprio Jesus. Todo o resto (doutrina, liturgia, moral) é consequência
Mais ainda: cristão é aquele que reconhece não somente a divindade de Jesus, como também a sua vitória sobre a morte. O cristianismo se resume nisto: no acontecimento de uma pessoa, de uma pessoa na qual se acredita permanecer viva, pois, se é Deus, pode tudo. E qual a importância de relembrar estes fatos? Porque, do ponto de vista fenomenológico, o anúncio de Jesus implicou uma verdadeira revolução no relacionamento do ser humano com o destino.
Em primeiro lugar, a transcendência tornou-se imanência. O Ser, em Jesus, deixa de ser uma realidade apenas etérea, infinitamente distante, e passa a ser uma realidade física, experimentável, próxima. De fato, era possível ver, ouvir e tocar em Jesus. Há algo de ainda mais revolucionário nisto: Jesus afirmou que se identifica com aqueles que o seguem, ou seja, com os seus discípulos; afirma que onde estão aqueles que são seus, ele está presente. Mais do que uma revolução fenomenológica (o Ser se torna experimentável), é uma revolução ontológica: um homem tocado pelo cristianismo e que a ele adere não é mais apenas ele mesmo, torna-se investido por um poder do alto, torna-se outro, “nasce de novo”, é uma “nova criatura”.
Ou seja, o cristianismo não é uma doutrina, um conjunto de regras, uma liturgia, uma moral ou uma ética. Não! O cristianismo é um acontecimento, o acontecimento do próprio Jesus e de homens e mulheres novos, ou seja, do conjunto daqueles que o seguem hoje. Todo o resto (doutrina, liturgia, moral) é consequência. O cristianismo coincide com toda a vida do povo cristão, chamado pelo papa São Paulo VI de “entidade étnica sui generis”.
O que estamos celebramos neste tempo do Natal – que termina hoje, com a Epifania – não é apenas uma devota e saudosa lembrança de algo que aconteceu há centenas de anos na Palestina. O acontecimento do Natal é o início de algo que continua presente, é como a nascente de um grande rio, que, partindo da fé de Maria (que acolheu o anúncio da vinda de Deus numa carne humana), atravessa a história e diversas regiões, no tempo e no espaço, e chega até nós, de tal forma que hoje podemos nos banhar e nos refrescar em suas águas.
Olhar para a figura de Maria e para a sua fé (para a sua acolhida do Ser que pede para entrar na carne do real, para se tornar próximo a nós), olhar para aquela que acreditou, para a mulher que gerou e gera essa Presença presente, é fundamental. Ela é inimiga mortal do niilismo. Sempre foi e continuará sendo. Opõe-se a ele ainda hoje. Olhar para a fé de Maria, acolhendo o transcendente que vem, nos ensina que a vida tem um sentido, não caminha para o nada, mas sim para a plenitude e para a transcendência; para uma transcendência que, graças à fé e à acolhida de Maria, veio, vem e continua presente.
Dimitri Martins é mestre em Administração, especialista em Gestão Pública e analista de Políticas Sociais no Ministério da Economia.