Em menos de uma semana de novo governo, o sistema penitenciário brasileiro enviou mais um alerta para os mandatários da nação. A crise, dessa vez, abateu-se primeiramente sobre o Ceará. Ao que parece, em resposta a decisões administrativas que diziam respeito ao isolamento de lideranças e ao funcionamento das unidades, as principais facções do estado se uniram para uma ação conjunta. O número de atentados contra prédios públicos, instituições e coletivos ultrapassou uma centena. Os prejuízos econômicos são incalculáveis; os políticos, previsíveis.
O terrorismo instituído por esses grupos não é novidade. No Rio de Janeiro, ataques a coletivos, toques de recolher e ordens arbitrárias de fechamento do comércio fazem parte da rotina carioca desde os anos 1990. Em São Paulo, o PCC instituiu o modus operandi em 2006, com muito mais método e poder de fogo. Na década seguinte, estados como Mato Grosso, Paraná, Rio Grande do Norte, Amazônia e outros se viram constrangidos por esse tipo de atuação. Em 2017, uma disputa entre os principais grupos do país deixou um rastro de sangue em grande parte do sistema penitenciário nacional.
Facções ou gangues prisionais não são um fenômeno exclusivamente nacional. Existem em quase toda a América Latina, com destaque para as chamadas “maras” que, desde os anos 1980, são uma constante dor de cabeça para governos da América Central e dos Estados Unidos, onde organizações como La Eme, Nuestra Família, Conservative Vice Lords, Black Guerrila Family e Aryan Brotherhood disputam um sistema penitenciário racialmente segregado, também com impacto direto na organização da criminalidade urbana.
Facções ou gangues prisionais não são um fenômeno exclusivamente nacional
Facções se formam por diversas razões, mas é possível analisar os mecanismos mais básicos de produção e reprodução do fenômeno. Prisões, pela sua própria natureza, instituem privações – de bens de consumo, segurança, sexo, autonomia, lazer. Essas privações ensejam competição por recursos escassos e arenas de trocas de mercadorias e outros bens e serviços, legais e ilegais. Em mercados não regulados, a competição não raro resulta em violência, como forma de garantir o cumprimento de contratos ou reduzir os danos ocasionados por guerra de preços ou concorrência desleal.
Em ambientes normais, presos costumam desenvolver subculturas ou hábitos que regulam essas relações de troca. Não tem espaço? Em vez de brigar pela cama, o mais antigo é que a ocupa. Quer usar os aparelhos de musculação? Tem fila. Chegou agora? Procure os mais velhos para saber como se organiza o sono, o que pode fazer em dia de visita, quem deve ser respeitado ou não etc.
Isso vale, principalmente, para aquelas áreas ou zonas cinzentas em que não há controle absoluto pelo Estado, que aumentam ou diminuem, conforme a superlotação, o efetivo de agentes, a rotina da prisão, as decisões administrativas e o modelo de gestão.
O grande contingente populacional impõe busca intensa por recursos mais escassos. Coisas que não eram objeto de disputa logo passam a ser. Espaço, por exemplo. A alta rotatividade de presos torna difícil a eficácia de acordos, hábitos e rotinas informais. Um grande afluxo de jovens retira dos mais velhos a capacidade de exercer controles pela reputação, fofoca, aceitação ou rejeição. A instituição de mercados como o de drogas impõe mecanismos de cobrança de dívidas, mas também disputas por clientela.
Aumentam o conflito e a violência. Acordos informais perdem sua validade. Predominam os indivíduos mais violentos e agressivos, que vivem da predação constante dos demais. Dissemina-se a intimidação, a agressão, a extorsão, o assédio, o estupro, a morte violenta.
Em algum momento, a coisa estoura. Um grupo de presos com recursos, força, capacidade e tecnologia suficientes se impõe sobre os demais, instituindo governança centralizada nas relações sociais. Quem pode e quem não pode vender drogas, quem ocupa ou não a cama, o que é permitido e o que não é, qual a punição para cada infração, quem está protegido e quem não está, mediante que preço. O crime organizado, ao seu modo, organiza. Ainda que, muitas vezes, os conflitos se perpetuem ou até aumentem, dada a competição entre grupos pela conquista de mais espaços.
Como a prisão é destino natural de muito criminoso de carreira, é normal que mais e mais pessoas se vejam inseridas nessas organizações, por necessidade de proteção ou busca de vantagens diferenciadas de mercado. Cadeias dominadas funcionam como bases seguras para lideranças, que não precisam contar com a instabilidade, os mercados abertos e descobertos da rua. Novas tecnologias de comunicação permitem fluxo constante de informações e mercadorias. O acúmulo de recursos proporciona a corrupção ou conivência necessária dos agentes do Estado, por interesse ou por medo.
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Outros fatores antropológicos também se encontram presentes. A operação do mecanismo do bode expiatório, conforme descrito pelo antropólogo René Girard, por exemplo, que garante e união e a criação de subcultura a partir da definição e eliminação de inimigos comuns – os presos rebeldes, as demais facções, o Estado, a sociedade conivente.
Conta também a gestão das unidades e do sistema como um todo. A capacidade de identificar, monitorar e gerir intermediários que facilitam a comunicação entre as celas e alas. A administração correta de incentivos e punições que influencia a necessidade de instituições centralizadas de governança informal. Os sistemas de inteligência e os recursos disponíveis para isolamento e incapacitação de lideranças. O monitoramento externo e as regras que influenciam o trabalho de diretores e agentes de custódia. A integração entre as instituições do sistema de Justiça criminal.
Lidar com o problema exige estudo, comparação, inventividade e ousadia. O desafio está sendo enfrentado por diversas autoridades do mundo, neste exato momento – EUA, Honduras, México, Brasil, Polônia. Não há receita pronta, nem solução definitiva. Porém, uma coisa é certa: temos falhado miseravelmente até aqui.