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O descaso com o usuário de serviços públicos

 | Marcos Tavares/Thapcom
(Foto: Marcos Tavares/Thapcom)

A origem da expressão “para inglês ver” tem muitas explicações. Segundo a versão mais popular, após a proibição do comércio de escravos pela Coroa britânica, no início do século 19, o Brasil teria editado leis que aparentemente impediam o tráfico, mas que não seriam cumpridas: eram feitas apenas “para inglês ver”.

Definida pelo Dicionário Houaiss como “para efeito de aparência”, a expressão é inteiramente aplicável à Lei 13.460/2017, que dispõe sobre a participação, proteção e defesa dos usuários de serviços públicos. Com incorreções técnicas, sem inovações substantivas e sem prever sanções, a lei não terá a eficácia e a efetividade desejadas. Ao aprová-la, o legislador frustra 19 anos de expectativa por uma lei para regular a participação do usuário na administração pública, conforme prometido pela Emenda Constitucional 19/1998.

Desde o ano 2000, adormece na Câmara dos Deputados um anteprojeto de lei sobre o tema, elaborado por uma comissão da qual fui relator. Submetido a uma audiência pública com representantes de usuários, prestadores de serviços, órgãos e entidades de controle, esse anteprojeto foi aprovado por unanimidade no auditório da Faculdade de Direito da UFPR. Infelizmente, as vozes da comissão e da audiência pública não reverberaram na edição da Lei 13.460/2017.

O legislador frustra 19 anos de expectativa por uma lei para regular a participação do usuário na administração pública

A nova lei se aplica aos serviços realizados pela administração pública direta e indireta das três esferas de governo e, subsidiariamente, aos serviços públicos prestados por particulares. Após um longo elenco de direitos e deveres, a lei disciplina as cartas de serviços, reduzindo todas as formas de defesa do usuário à frágil possibilidade de manifestação à ouvidoria (artigo 9.º) ou, quando esta não existir, ao órgão ou entidade reclamada (artigo 9.º, § 3.º).

Embora dedique todo um capítulo às ouvidorias, a nova lei se limita a descrever as competências do órgão (nos artigos 13 e 14), sem instituir garantia ou prerrogativa capaz de assegurar autonomia e independência para o exercício de suas atribuições. Desconsiderando farta bibliografia e experiências institucionais existentes desde a década de 1980 – em 1986, no município de Curitiba, foi criada a primeira ouvidoria pública brasileira –, a lei converte esse instrumento de controle e participação em mero balcão de reclamações.

A mesma timidez orientou a previsão dos conselhos de usuários: reduzidos a uma função meramente consultiva (artigo 18) e desprovidos de poderes, cabe-lhes tão somente acompanhar a efetivação, participar na avaliação e propor melhorias nos serviços prestados. Não há nem sequer a previsão do dever de criação desses conselhos, ficando sua instituição ao arbítrio dos prestadores de serviços públicos.

A lei é ainda mais acanhada ao estabelecer um processo de avaliação dos serviços públicos (no capítulo VI) sem condicionar sua validade à participação das ouvidorias e dos conselhos de usuários previstos nos capítulos anteriores. Amesquinhado em uma pesquisa de satisfação anual, a única exigência desse processo é que os resultados obtidos tenham “significância estatística”.

Nessas modestas previsões se resume a lei que, desconsiderando sua baixíssima percussão na estrutura e funcionamento da administração, prevê uma vacatio legis entre 360 e 720 dias – neste caso, para os municípios com menos de 100 mil habitantes.

Os 17 anos que separam a aprovação do anteprojeto em audiência pública e a edição da Lei 13.460/2017 de nada serviram, senão para mutilar as expectativas de avanço: a lei nega ao país a possibilidade de uma nova engenharia institucional para os serviços públicos, construída por instâncias de participação e controle compostas por representantes dos usuários. Em um contexto marcado pela insatisfação popular quanto à administração, desperdiçou-se a chance de qualificar as ouvidorias públicas, converter os conselhos de usuários em instâncias de controle, avaliação e aprimoramento dos serviços públicos, e responsabilizar a má gestão e execução desses serviços. De fato, tratava-se de uma ótima oportunidade para habilitar o cidadão à decisiva e eficaz participação no controle de atividades que são por ele custeadas e para ele destinadas.

Se aos usuários fossem oferecidos instrumentos semelhantes aos oferecidos pelo Código de Defesa do Consumidor, poderíamos alentar a esperança de aperfeiçoamento dos serviços públicos brasileiros. Infelizmente, essa esperança só seria realizável por uma atuação cidadã amparada por uma legislação consistente, que não fosse feita apenas “para inglês ver”.

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